Justiça

Juízes negros ainda representam uma minoria, no entanto, sua presença também abre portas para novas oportunidades e perspectivas

Primeira Parte

Se passaram quase 140 anos desde a histórica Abolição da Escravatura no Brasil, um marco conquistado graças ao engajamento popular e à resistência dos próprios escravizados. Contudo, as cicatrizes desse período ainda reverberam nas estruturas da sociedade brasileira contemporânea. Dos corredores da educação básica até os bancos universitários, fica evidente que há um longo caminho a percorrer na busca por equidade racial.

O cenário educacional brasileiro, quando observado de perto, reflete as disparidades que persistem. Apesar dos avanços proporcionados por políticas educacionais e a implementação de cotas, especialmente nas universidades públicas e privadas, a presença negra ainda não se equipara à sua representatividade na população.  Ao focalizarmos a trajetória acadêmica, é possível constatar que a batalha pela inclusão está longe de ser vencida. O aumento da presença negra nas universidades é uma conquista inegável, mas é imperativo expandir o debate para outras esferas, como o acesso a cargos públicos.

É crucial abordar a questão das vagas reservadas para pessoas negras em concursos públicos. Embora existam iniciativas nesse sentido, a proporção de oportunidades ainda é desproporcional em relação à relevância desse grupo na demografia brasileira. Ainda que as portas estejam entreabertas, a jornada para se tornar um servidor público, alcançar posições de destaque, como a de juiz de direito em um Tribunal de Justiça, é árdua e repleta de desafios. Nesse contexto, dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançam luz sobre a realidade enfrentada por indivíduos negros que aspiram a carreiras jurídicas. Estes números revelam não apenas a escassez de representatividade, mas também os obstáculos estruturais que persistem, dificultando a ascensão desses profissionais a cargos de influência.

Em um momento em que a sociedade reflete sobre seu passado e busca construir um futuro mais igualitário, torna-se essencial continuar esse diálogo, não apenas na esfera educacional, mas também no âmbito dos concursos públicos e das carreiras de prestígio. Somente reconhecendo e enfrentando esses desafios de frente, podemos aspirar a uma sociedade verdadeiramente justa e inclusiva, honrando o legado daqueles que lutaram pela liberdade há quase 140 anos?

De acordo com o diagnóstico étnico-racial de 2022, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, a magistratura nacional apresenta uma representatividade de 83,3% de magistrados negros, enquanto 12,8% são negros-pardos e 1,7% são negros-pretos. No entanto, ao se fazer um recorte específico para a Bahia, observa-se uma proporção significativa de 41,8% de magistrados que se identificam como negros-pardos e negros-pretos no Tribunal de Justiça local. Esse número se mantém relevante na Justiça do Trabalho (40%) e no Tribunal Regional Eleitoral (43,3%).

O que diz o Conselho Nacional de Justiça?

Segundo Wanessa Mendes de Araújo, juíza auxiliar da Presidência do CNJ, embora a Bahia se destaque na representatividade racial da magistratura, é essencial considerar não apenas a média nacional, mas também a demografia local. A análise precisa levar em conta não apenas a população brasileira como um todo, mas a peculiaridade do estado baiano, onde a maioria é composta por pessoas negras: “Se compararmos o perfil racial da magistratura nacional, os números sugerem que a Bahia encontra-se em posição destacada, porém, é necessário trazer a análise para o perfil racial, quer da população brasileira, quer da população local, isso porque de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” destaca a magistrada.

Uma análise comparativa ganha relevância ao confrontar esses dados com a realidade racial da população brasileira e baiana. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% da população brasileira se declara negra. No entanto, na Bahia, esse percentual sobe para 81,1%, indicando que o estado possui uma das maiores presenças de população negra do país.

Ao relacionar essas estatísticas com a composição racial da magistratura baiana, os números sugerem uma representatividade mais expressiva do que a média nacional. Entretanto, é crucial contextualizar esses dados à realidade local, considerando que 19,9% da população baiana se declara branca. Nesse aspecto, a presença de pessoas brancas representa 58,2% na Justiça Estadual e 60% na Justiça do Trabalho. Diante do desafio de promover a presença efetiva de juízes negros na magistratura baiana, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Karen Luise de Souza, destaca a importância de ir além das cotas, enfatizando a necessidade de fornecer condições de concorrência e estudo. Mas como isso poderia ser implementado de maneira eficaz no contexto específico do estado da Bahia?

A resposta a essa indagação encontra respaldo na iniciativa do Ministro Luís Roberto Barroso, anunciada durante a I Jornada da Justiça e Equidade Racial. Barroso propôs a criação de bolsas de estudos remuneradas, com duração de dois anos, destinadas a candidatas(os) negras(os) interessadas em se dedicar aos estudos para o concurso da magistratura. Essa proposta busca superar as limitações das cotas isoladas, reconhecendo que, mesmo com tais medidas, o preenchimento efetivo da cota racial demanda um tempo considerável, aproximadamente 30 anos nas condições atuais.

O Conselho Nacional de Justiça, ao analisar a eficácia das cotas, concluiu que é crucial envidar esforços concretos para capacitar as(os) candidatas(os) negras(os), proporcionando-lhes melhores condições de concorrência. Nesse sentido, a iniciativa das bolsas de estudo surge como uma estratégia para acelerar esse processo, possibilitando uma preparação mais sólida e eficaz. 

É imperioso que ações como essa sejam encapadas por outras entidades, públicas e privadas, pois está claro que há um obstáculo substancial, notadamente em termos sócio-econômicos, que inviabilizam o acesso das pessoas negras a concursos do nível da magistratura.afirma Wanessa Mendes de Araújo. 

Entretanto, para a juíza auxiliar, é imperativo que ações como essa sejam apoiadas e implementadas não apenas pelo CNJ, mas também por outras entidades, tanto públicas quanto privadas. A necessidade de uma abordagem abrangente é evidente, especialmente considerando os obstáculos substanciais, sobretudo de natureza sócio-econômica, que dificultam o acesso das pessoas negras aos concursos de alto nível, como o da magistratura.

Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revela que a maioria da população negra na Bahia enfrenta condições precárias no mercado de trabalho, muitas vezes atuando na informalidade e percebendo renda insuficiente para conciliar trabalho e estudos. Homens negros, em média, percebem R$ 1.540,00, enquanto as mulheres negras recebem R$ 1.334,00, o que evidencia as disparidades econômicas que precisam ser endereçadas para promover uma competição mais justa e igualitária no acesso à magistratura.

Assim, o caminho para uma magistratura verdadeiramente representativa na Bahia passa não apenas pela implementação de cotas, mas pela criação de oportunidades tangíveis, como bolsas de estudo remuneradas, e pela atuação coordenada de diversos setores da sociedade na promoção da igualdade de condições para todos os aspirantes a uma carreira judicial. Essas medidas não apenas aceleram a inclusão, mas também fortalecem a diversidade e a legitimidade do Poder Judiciário no estado. Ao analisar  o surpreendente índice de 61% de magistrados negros no Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, revelado pelo recente Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, surge a questão crucial: como seria possível replicar estratégias bem-sucedidas desse tribunal na Bahia, visando aumentar a representatividade racial na magistratura?

De acordo com juíza Wanessa Mendes de Araújo,  o diagnóstico não detalha as estratégias específicas adotadas pelos tribunais para promover a inserção de magistrados negros. No entanto, destaca uma medida de destaque que pode ser considerada como um exemplo a ser seguido. Por outro lado, o Fórum Nacional para Equidade Racial, criado por meio da Resolução n°490 de 8 de março de 2023, desempenha um papel fundamental na elaboração de estudos e proposição de medidas concretas para aprimorar o sistema de justiça em relação à equidade racial. 

Fomentando a Equidade na Magistratura Baiana

Questionada sobre a possibilidade de replicar o sucesso do Amapá na Bahia, a magistrada afirma que seria fundamental que o estado adotasse medidas similares. Implementar políticas que eliminem barreiras excessivas nas primeiras fases dos concursos pode ser crucial para garantir a participação efetiva de candidatos negros, permitindo que avancem e compensem diferenças históricas e sociais que impactam suas oportunidades de preparação.

Essa iniciativa nacional é complementada por medidas específicas adotadas em concursos para a magistratura. O artigo 2º, § 3º, da Resolução n°2023/2015, com nova redação dada pela Resolução n°516/2023, proíbe cláusulas de barreira para candidatos negros. Bastando o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência, ou seja, nota 6,0 nos concursos da magistratura, para que os candidatos cotistas avancem para as fases subsequentes.  Para a magistrada, a importância dessa medida para assegurar que pessoas negras não sejam excluídas dos certames, especialmente nas fases iniciais, onde as notas de corte frequentemente superam a nota geral de 6,0. Essa política representa a superação de um importante obstáculo ao acesso às fases seguintes e à aprovação.  Para a magistrada,

“Essa medida tem o importante papel de assegurar que as pessoas negras não sejam excluídas dos certames, em especial, nas primeiras fases por não atingir notas de corte que costumam ser superiores à nota geral de 6,0, o que representa a transposição de um importante obstáculo ao acesso às fases seguintes e à aprovação.” 

Além disso, promover a transparência sobre as estratégias adotadas pelo Tribunal de Justiça do Amapá, e por outros tribunais que apresentam sucesso na promoção da diversidade racial, pode inspirar o desenvolvimento de políticas locais na Bahia. Uma abordagem coordenada entre instituições, a exemplo do Fórum Nacional para Equidade Racial, também pode ser um caminho promissor para a criação de políticas inclusivas e o estabelecimento de padrões de equidade racial na magistratura baiana. Dessa forma, ao aprender com experiências positivas em outros estados, a Bahia pode pavimentar o caminho para uma magistratura mais representativa, inclusiva e condizente com a diversidade do povo brasileiro.

A questão da baixa representatividade de mulheres negras em cargos de chefia na Justiça é um desafio que demanda medidas efetivas para promover maior equidade de gênero e raça. Diante desse cenário, questionamos como as iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, como a Resolução CNJ n. 203/2015, poderiam ser aprimoradas para impulsionar esses objetivos no contexto do estado da Bahia. 

A magistrada enfatiza ainda,  a importância da Resolução n°203/2015, que trata da reserva de vagas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Ela destaca que a resolução também permite que os tribunais instituam mecanismos de ação afirmativa para garantir o acesso de pessoas a cargos em comissão e funções comissionadas. Além disso, a magistrada aponta para a Resolução CNJ n° 255, de 4 de setembro de 2018, que reforça a necessidade de medidas para promover a igualdade de gênero no Poder Judiciário.

Ambas as normativas, segundo a magistrada, delineiam diretrizes e mecanismos que orientam os órgãos judiciais a incentivar a participação das mulheres nos cargos de chefia, assessoramento, bancas de concurso e como expositoras em eventos. Ela destaca que essas normas têm um enfoque duplo, promovendo não apenas a equidade de gênero, mas também a equidade racial, incluindo a efetiva participação das mulheres negras nos espaços de poder.

Nesse contexto, a magistrada enfatiza a necessidade de buscar a efetivação dessas normas do Conselho Nacional de Justiça. A adoção das ações afirmativas já contempladas nos normativos é apontada como crucial para garantir a concretização dos objetivos de equidade de gênero e raça. No entanto, a magistrada sugere que há um caminho a percorrer na implementação dessas medidas, ressaltando a importância de ações práticas para superar os desafios existentes.

O contexto baiano, assim como em outros estados, requer uma abordagem específica para enfrentar as barreiras à ascensão de mulheres, especialmente mulheres negras, aos cargos de liderança na Justiça. Portanto, a busca pela efetivação das normas do CNJ, aliada à implementação de ações afirmativas tangíveis, é essencial para transformar as intenções dessas resoluções em resultados concretos, proporcionando uma representação mais justa e diversificada nos órgãos judiciais da Bahia.

Nossa opinião 

Essas  discussões instigam a reflexão sobre a importância da diversidade racial no Poder Judiciário e a necessidade de políticas que promovam a equidade em todas as instâncias. A Bahia, mesmo em posição destacada, enfrenta desafios que demandam um olhar atento e estratégias específicas para fortalecer a representatividade racial na magistratura. Ao finalizar esta análise aprofundada sobre a representatividade racial na magistratura, fica evidente que a Bahia se destaca, mas o caminho em direção a uma justiça verdadeiramente representativa ainda apresenta desafios significativos.

Os dados do CNJ revelam avanços notáveis, mas também indicam que, mesmo em uma posição destacada, a magistratura baiana deve continuar aperfeiçoando suas estratégias para promover uma inclusão mais abrangente. As experiências positivas de outros estados, como o Amapá, e as propostas inovadoras, como as bolsas de estudos remuneradas, oferecem insights valiosos para moldar políticas eficazes. 

Ao destacar a importância de considerar a demografia local, a juíza Wanessa Mendes de Araújo ressalta que a luta pela equidade racial na magistratura não é uma jornada isolada e requer a colaboração de entidades, a adaptação a peculiaridades regionais e o compromisso contínuo com a diversidade e inclusão.

Portanto, a Bahia está diante de uma oportunidade crucial de liderar o caminho em direção a uma justiça que verdadeiramente reflita a diversidade de sua população. A busca por uma magistratura mais representativa não é apenas uma aspiração, mas um imperativo para garantir que a justiça seja acessível, imparcial e alinhada aos princípios fundamentais de uma sociedade igualitária. Ao enfrentar os desafios com determinação e inovação, a Bahia pode se tornar um modelo inspirador para todo o país, construindo um Poder Judiciário que verdadeiramente representa e serve a todos os cidadãos.

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