Géssica Maria Silva São José, natural de Rio de Contas, Bahia. Com 27 anos, ela é uma mulher preta, historiadora formada pela UESB em 2021, atualmente mestranda em Memória: Linguagem e Sociedade na mesma instituição. Além de cantora e compositora, Géssica destaca-se como ativista social, candomblecista e feminista, fazendo parte do cenário artístico de Vitória da Conquista.
Seu envolvimento artístico inclui participações em shows e eventos locais, destacando-se em tributos a artistas como Clara Nunes e Elza Soares. Ela é idealizadora do projeto de samba Sambodara desde 2015 e do projeto Bossa Nova em 2021. Atualmente, integra o projeto Quintas do Samba e planeja lançar seu primeiro EP neste ano.
Na área acadêmica, suas pesquisas foram direcionadas ao feminismo negro e à educação contra-hegemônica no Brasil. Seu trabalho de conclusão de curso focou na comunidade quilombola de Barra em Rio de Contas, rendendo um artigo a ser publicado no livro Narrativas Ancestrais. Géssica também cursa Psicopedagogia na FASU em Vitória da Conquista e participou de diversas apresentações musicais em eventos acadêmicos.
Iniciada no candomblé para o orixá Ósun, Géssica se identifica como Dofona de Oxum no terreiro Omi T’Ogun. Sua jornada espiritual iniciou em Vitória da Conquista, onde promoveu eventos culturais e ações sociais, como o Sarau Cultural e o Sopão Solidário. Aos 28 anos, Géssica Maria é uma figura multifacetada, unindo sua paixão pela música, ativismo social, pesquisa acadêmica e espiritualidade em uma trajetória rica e diversificada.
Esta entrevista com Géssica Maria (28) oferece uma visão rica e detalhada de sua trajetória como cantora e pesquisadora, destacando seu profundo envolvimento com a cultura afro-brasileira e o samba. Como uma mulher preta e iniciada no Candomblé, Géssica como é porpularmente conhecida na cidade de Vitória da Conquista e adjacências, compartilha suas experiências desafiadoras e triunfos ao abrir caminho no cenário musical, especialmente em Vitória da Conquista e Rio de Contas, sua terra natal. Sua dedicação ao samba e sua busca por representatividade são evidentes, e ela oferece uma perspectiva valiosa sobre o papel das mulheres pretas no cenário artístico e sua importância na preservação e promoção da cultura afro-brasileira. Além disso, Géssica compartilha suas futuras aspirações, incluindo um projeto autoral que promete consolidar ainda mais sua influência no mundo da música. Esta entrevista oferece uma visão inspiradora de uma artista talentosa e comprometida com sua herança cultural e espiritualidade.
Ìrantì – Por que você decidiu se mudar para Vitória da Conquista no final de 2012 e qual foi a motivação por trás dessa mudança?
Géssica Maria – Vim para Vitória da Conquista no final do ano de 2012, ao término do ensino médio. Eu vim para estudar. Tinha o sonho de sair para fazer faculdade, Rio de Contas, uma cidade pequena, tem ainda essas limitações no ensino superior. Em 2013 fiz cursinho pré-vestibular, estudava pela manhã e trabalhava à tarde para pagar o cursinho. Conseguir passar na Uesb[1], tinha o foco de passar em Matemática, em 2014, comecei a cursar Matemática, já descobrindo na passagem do segundo ao terceiro semestre que iria para o curso de História, então, fiz novamente o vestibular para História e estou até hoje.
Ìrantì – Como se deu o início da sua jornada como cantora, considerando o atravessamento de sua vida acadêmica com a carreira artística?
Géssica Maria – Paralela a minha vida acadêmica eu desenvolvi a minha carreira artística na cidade, logo que aqui cheguei recebi um convite para trabalhar com o público infantil, através de uma antiga professora que tive no ensino fundamental e médio, que me convidou para fazer parte de um projeto para crianças, entre os anos de 2013 e 2014 fiquei envolvida neste projeto, cantava músicas para crianças. Sendo que ela me fez este convite porque quando em Rio de Contas, eu atuava no teatro, nos festivais. Sempre fui participativa em tudo na escola e, como ela sabia disso, acabou me dando esta oportunidade. Em 2014 eu comecei uma caminhada mais profissional, fazendo back vocal para o cantor Ítalo Silva no “Tambor brasileiro”, show apresentado no Teatro Carlos Jehovah; participei do “Por isso é que eu canto”, concurso de música promovido pela Prefeitura de Vitória da Conquista. Em 2015 começo a cantar nos barzinhos, tive meu primeiro show sozinha no Teatro Carlos Jehovah com o “Canto das três raças”.
Ìrantì – Por que o samba exerce um impacto tão profundo em você, tanto musicalmente quanto espiritualmente?
Géssica Maria – É uma vertente que me toca, musicalmente falando, mesmo apreciando outros ritmos, em se tratando de Brasil é impossível se fechar em um único ritmo, mas o samba pulsa dentro de mim, no meu coração, mexe profundamente com minhas emoções, tem muito a ver com minha vida espiritual. Esse entendimento eu fui ter tempos depois. Desde pequenininha eu fazia parte das rodas de sambas em Rio de Contas, do samba do Mendengó do Quilombo de Barra, localizado em Rio de Contas, Bahia e de outras manifestações: reisado, que tinha na cidade. Eu me lembro que amava fazer parte, ficava encantada com os sons, as cores, com a nossa cultura tão rica. O samba toca meu coração desde pequenininha. Ouvia com minha vó os discos que ela tinha de Clara Nunes, de Jackson do Pandeiro.
Ìrantì – Géssica, como foi sua introdução ao samba do Mendengó do Quilombo de Barra e o que motivou sua pesquisa desde a graduação até o mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade? Poderia explicar as características específicas desse samba, sua relevância como forma de resistência e sua conexão com a história e cultura dos quilombolas em Rio de Contas e áreas próximas, como Barra, Bananal e Riacho das Pedras? Além disso, gostaria de entender como a palavra “mendengó”, com raízes nagô/bantu, se transformou em um símbolo significativo de resistência cultural ao longo do tempo.
Géssica Maria – Eu desenvolvi uma pesquisa sobre o samba do Mendengó do Quilombo de Barra, desde a minha graduação, foi um projeto que me dediquei desde o ano de 2019 até 2021 e continuo a pesquisar também no Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade. O samba que me moveu a pesquisar o Quilombo de Barra depois eu expandir para outras possibilidades: o artesanato, a religiosidade, a educação. O samba do Mendengó traz sua especificidade, a célula que só faz parte daquela região, é muito particular. É um samba lindo; é um samba de resistência é o que mais aproxima os quilombolas do momento em que seus antepassados chegam em Rio de Contas, que pisaram naquela terra. O samba do Mendengó se mantem até os dias de hoje, a própria palavra mendengó de origem nagô/bantu é o próprio símbolo do “eu resistir, a minha cultura africana está aqui”. Com catequese sem catequese, passando pela escravização, o samba do Mendengó está ali. É o mesmo com o Candomblé na Bahia e em outras regiões do Brasil, é a sobrevivência de um povo. O samba do Mendengó não é só um samba, é um quilombo, são os quilombos de Rio de Contas, Barra, Bananal, Riacho das Pedras, é a célula viva do símbolo maior de resistência. Nessa pesquisa conheci Bezinha, uma das lideranças do samba de roda de lá, uma mulher preta, fantástica, que foi professora da comunidade, responsável por formar os seus, é artesã, que traz a história do quilombo junto com ela, sua história me inspira.
Ìrantì – Como é apresentar uma cultura quilombola na academia, considerando a responsabilidade de representar cada quilombo com sua história específica? Como você lida com as limitações da academia, que ainda é elitista e eurocêntrica, ao trazer uma cultura quilombola, em especial a de Rio de Contas, para discussão? Além disso, como sua própria experiência como mulher preta, neta de lavadeira e filha de dona de casa, molda sua abordagem ao estudar e apresentar a cultura quilombola?
Géssica Maria – Levar para o mundo acadêmico a cultura quilombola é muita responsabilidade, cada quilombo tem sua história, a história de sua região, então quando a gente estuda o sertão da Bahia que ainda há relatos históricos que estão muitos guardados e ainda não foram alcançados pela academia e por eu ser de Rio de Contas me traz satisfação de poder discutir e trazer o povo de lá para dentro da academia, para dentro da UESB que é uma das principais universidades aqui do interior da Bahia, isso é de muita força. A academia com suas limitações ainda elitista, ainda branca, ainda com pensamentos eurocêntricos, quando a gente traz a cultura quilombola, quando eu trago a cultura de Rio de Contas, eu trago a minha história também eu faço parte dela, eu sou uma mulher preta, neta de lavadeira, sou filha de uma dona de casa. Dentro da cidade rio-contense a minha família foi sempre esmagada pelo preconceito, pelo racismo tudo aquilo que nós que somos pretas e indígenas enfrentamos. Eu tenho me tornado uma pessoa formada em História, estar no mestrado conseguir pesquisar sobre minha própria cidade coisa que muitos não conseguem fazer é uma resposta a esse passado que trago comigo e a esse passado que o próprio quilombo trouxe. Então, a gente exaltar essas histórias trazer as narrativas vivas e colocá-las dentro da academia é dá voz aos povos quilombolas, que é o que a gente precisa para alcançar os diversos lugares. Essa pesquisa é um marco muito forte em minha vida. Até aqui onde eu caminhei, com a idade que tenho, me sinto feliz por ter tido a permissão dos meus ancestrais para isso e me sinto com responsabilidade. A gente vai permanecer e a trazer não só no espaço acadêmico, mas para outros espaços, a história desse lugar onde eu também pertenço, nasci na sede da cidade, mas faço parte da história daquele lugar, me identifico com a cultura do aquilombamento.
Ìrantí – Quanto a sua família, você relatou que não há outros artistas com carreiras profissionais, mas sua avó era uma influenciadora musical. Como essas influências familiares, incluindo o gosto pela música de seu tio e avó, e a poesia de sua irmã, desenvolvida para sua conexão com a música, especialmente o samba? Como sua vivência no Candomblé, sendo do Omi T’Ogun e filha de Oxun, influencia sua relação com manifestações culturais, como o samba de caboclo e o samba de roda? Como você vê essa conexão entre suas raízes culturais, a espiritualidade e a expressão artística, especialmente sendo uma mulher preta nordestina?
Géssica Maria – Na minha família não tem outras pessoas artistas como carreira profissional. Meu tio, minha vó tem um gosto pela música. Minha irmã é poeta. Minha vó sempre foi uma influenciadora musical, ela cantava também. Era lavadeira, ia lavar as roupas na beira da água e cantava, mesmo tendo uma vida muita sofrida, ela conseguiu passar muita leveza para mim, principalmente, através da arte. O samba é uma célula que pulsa de forma diferente dentro de mim. Depois que vim morar em vitória da conquista que me firmei no Candomblé, sou do Omi T’Ogun[2], sou filha de Oxun, somos movidas pela música ancestral. As nossas manifestações religiosas culturais são movidas pelo samba, o samba de caboclo, o samba de roda, eu sou movida por isso não tem como não ser o samba. Sou uma mulher preta nordestina que amo tudo que é da minha cultura, das nossas origens.
Ìrantì – Como você percebe a presença das mulheres pretas no cenário atual do samba em comparação com décadas passadas, especialmente considerando as particularidades da região nordestina, como Vitória da Conquista e Rio de Contas? Pode compartilhar insights sobre a representação e liderança das mulheres sambistas nessas localidades, destacando influências regionais e conexões com questões religiosas? Além disso, em relação a sua trajetória, como mulher preta, sambista e referência em Vitória da Conquista, como você vê o papel das oportunidades, escolhas de caminho e a persistência nos estudos na construção dessa posição? Como a cultura musical e o patrocínio, especialmente após o Estado Novo, impactaram a visibilidade de mulheres pretas no cenário do samba, especialmente em estados fora do eixo Rio de Janeiro-Salvador?
Géssica Maria – Nós tivemos períodos e momentos e cenários históricos que são diferentes dos de hoje, principalmente, aqui da região onde moro, Vitória da conquista. Rio de Contas, posso falar com mais propriedade, esse cenário mais nordestino digamos assim, porque em relação a Salvador, o Rio de Janeiro temos mulheres sambistas que são líderes de sambas de roda, estão no marketing musical. As influencias do samba nessas regiões acabam sendo mais fortes pelo estilo de vida, por muitas vezes, essas mulheres já serem inseridas em ambientes propícios ao samba. A maioria está interligada também a questões religiosas de acordo as peculiaridades de cada lugar, de cada quilombo, de cada Casa de Axé, de cada comunidade. Aqui na região, temos muitas mulheres pretas à frente do samba só que não aparecem, mulheres que são líderes de samba de roda, outros sambas que são mais regionais. É diferente de minha trajetória que hoje eu diria que eu entendo o lugar que ocupo no samba em Vitória da Conquista, acabei me tornando uma referência após esses dez anos, mas porque eu caminhei também por outros caminhos, tive oportunidades, alcancei outros lugares. O fato de não ter desistido dos estudos facilitou outros acessos e os caminhos que escolhi percorrer me ajudou muito. Não acredito ter sido por sorte, mas sim as escolhas de caminho. Muitas vezes as mulheres que não aparecem por conta de dificuldades da vida acabam não entrando na cena cultural de forma serem visibilizadas. Antigamente tínhamos uma cultura musical mais voltada para o empreendimento dentro do samba, após o Estado Novo, o samba recebeu um impulsionamento financeiro, principalmente no Rio de Janeiro. O samba recebeu um patrocínio muito forte para fazer os nomes que foram feitos como o de Elza Soares, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra e de outras mulheres pretas que aparecem nesse cenário. A maioria que se tornaram e se tornam públicas são do Rio de Janeiro, quando a gente vai olhar a configuração de outros estados poucas aparecem. Lia de Itamaracá que recebeu o título de “Patrimônio Vivo de Pernambuco”, em 2005, em resultado de uma política pública voltada para ela e de outras cirandeiras, não é a nossa realidade política da região onde moramos, as mulheres pretas sambistas, artistas existem só precisam de uma política que as visibilizem.
Ìrantì – Como você enfrenta os desafios como mulher preta no cenário artístico, considerando o contexto de racismo e preconceito, tanto internamente quanto externamente? Além disso, como você vê a necessidade de se esforçar mais para superar barreiras e como isso se reflete no desenvolvimento e reconhecimento do seu trabalho? Pode compartilhar experiências sobre a importância de enfrentar esses desafios e como isso moldou sua trajetória no samba e na música em geral?
Géssica Maria – Os principais desafios são os desafios que nós mulheres pretas enfrentamos na vida, como a gente ainda faz parte de um país racista, socialmente criado, pautado no racismo existem algumas batalhas visíveis e invisíveis que precisamos travar conosco mesmo antes de lançarmos voos mais altos. Então primeiro a gente enfrenta o preconceito, os fantasmas desse preconceito, desse racismo dentro de nós. Enfrentar o racismo e o preconceito e o que isso traz para nós, como isso nos destrói, passar por cima disso que é o mais difícil, porque gera insegurança em nosso trabalho, em ter coragem de apresentar uma proposta de trabalho aqui na cidade que ainda é um meio branco, elitista, conservador. Não é fácil cantar um samba que fala de entidades espirituais em determinados lugares, em determinados bairros. É preciso vencer os danos dentro de nós para depois a gente conseguir passar pelos desafios que estão fora de nós. Enfrentar as instituições, enfrentar o machismo, o cenário do samba ainda é um cenário de machismos em todo o Brasil e aqui não é diferente, digo por mim que faço parte de uma banda de samba e que só tem eu de mulher, faço parte de outros projetos em que, infelizmente, só tem eu de mulher inclusive para tocar instrumentos a gente quase não encontra mulheres negras. O cenário artístico não é diferente do cenário social como um todo, existem os padrões artísticos, por isso, que vimos mulheres brancas destacarem mais do que nós nas áreas culturais. É preciso superar esses desafios, dentro de nós, parte de dentro para fora e aí, mercadologicamente, eu diria que há uma exigência maior para nós em tudo, a mulher preta, sempre temos que nos esforçar mais, isso faz com que sejamos fortes, potentes, a gente potencializa nossos talentos, porque, a gente cria uma sede para acessar os lugares que nos foram limitados e que parecem que não são para nós, mas a gente consegue com muita luta quando a gente consegue vencer dentro o que vem de fora não consegue te afetar… de fazer você desistir de seus sonhos, da sua caminhada, de suas metas, de seus objetivos e de seu trabalho. Tudo é pautado em cima de muito trabalho, sempre trabalhei muito em cima de minhas propostas, projetos musicais. Tive alguns diferencias que possibilitaram ter esse destaque que tenho hoje por cantar samba em suas diversas vertentes: samba reggae, samba de roda, samba carioca, samba baiano; bossa nova, acho que são poucas mulheres, inclusive, que cantam bossa nova para ter um projeto tão particular como esse meu (Bossa Nossa). Então você tem que se identificar e se entender a partir disso, as portas se abrem, sempre vai ter aquelas possibilidades dentro do que você planeja. Necessário ter aquele jogo de cintura em saber o que você está fazendo com segurança, a gente consegue virar a chave daquilo que não seria permitido, aceito. Confesso que ser uma mulher das Águas faz com que seja mais fácil passar por cima das dificuldades, como as Águas.
Ìrantì – Como você percebe o cenário do samba em Vitória da Conquista ao longo dos últimos dez anos e como contribuiu para abrir espaços, especialmente sendo uma mulher sambista? Podemos falar sobre as limitações do samba na cidade, os desafios enfrentados, e como você enxerga o papel do poder público na promoção e valorização do samba regional?
Géssica Maria – Como mulher, quando olho para trás nesses últimos dez anos, uma mulher que autointitula sambista, apesar de cantar outros gêneros, sou uma sambista, falo isso com muita propriedade para todo mundo, é o ritmo que me especializei, que eu gosto, que eu busco, pesquiso. Eu não posso falar de outros ritmos porque eu não tenho propriedade. Sou uma mulher especialista do samba e que, sempre pesquisou o samba das mulheres pretas, então de fato é minha área. De dez anos para cá, como mulher preta eu conseguir de fato abrir muitos espaços, principalmente no meio masculino. Por ser uma mulher de classe social baixa, sair de minha cidade e passar por várias dificuldades aqui, eu diria que alcancei um lugar. Tinha tudo para dar errado, mas quando eu determino algo em minha vida eu vou com muita coragem, enfrento com coragem. O cenário de Vitória da Conquista para o samba se abriu com muita luta nesses últimos dez anos, mas há alguns equívocos ao que seria samba, as pessoas, às vezes, confundem o samba com pagode, confundem com outras vertentes que estão em ritmo de samba, então ainda falta o entendimento do que é realmente o samba, mas partindo da perspectiva do grupo de samba que faço parte, do que a gente canta, de fato a gente tem aberto e solidificado o samba em Vitória da Conquista através do projeto que traz shows todas as quintas-feiras, se tornou uma tradição, com seis anos de projeto, a gente bate ponto ali no bairro Brasil. Isso é um marco de quando o samba se mostra de forma fixa, não passageira. Conseguimos solidificar o projeto em outro espaço da cidade nesse ano, a cada quinze dias, nos apresentamos com shows de samba. Percebo que outras bandas de samba têm conseguido se mobilizar com mais facilidade aproveitando uma onda que espero que não seja passageira e acredito que não será, porque é um ritmo que é nosso genuíno brasileiro, é algo que pulsa dentro de nós. Acaba que a mentalidade dos empresários de Conquista vai se abrindo para o samba.
O que me entristece é o poder público não incentivar em nenhuma instância o samba regional, não ter projetos voltados para esse gênero que tem crescido de forma tão grandiosa quando a gente pega os editais de cultura aqui em nossa cidade, a gente vai ver que pouquíssimas bandas de samba são contempladas. Muita coisa tem melhorado e do meu lugar posso dizer que abri espaço para o samba enquanto mulher, isso é um marco potente aqui na cidade, ter coragem de sair de minha cidade e vim para cá, adotar um ritmo musical que é muito particular com todas as cargas que o samba enfrenta por ser música de gente preta, enfrentei muitos preconceitos e discriminação, muitas limitações e tentativas de silenciamento, de silenciar o meu canto, principalmente, por ser uma mulher de Candomblé, por mais que eu cante diversos tipos de sambas, quando a gente vai cantar samba de caboclo, de marujo sempre tem aqueles olhares carregados de discriminação e preconceito.
Digo que conseguir passar por cima de todos e todas que não quiseram o meu avanço e das outras que vieram, das que não estão mais aqui, que já estiveram e não conseguiram conquistar outros espaços e as outras que trago dentro de mim, represento uma comunidade de Axé que tem mulheres sambistas maravilhosas, eu trago essa energia, trago o canto e a potência das mulheres de Rio de Contas, não sou uma só, eu carrego minhas ancestrais comigo. Quando tomo posse disso para mim em qualquer espaço que estiver eu vou abrir para mim e para as mulheres que vem junto comigo e as que estão vindo. Hoje temos outras mulheres no cenário do samba: Geórgia que começou um pouco depois de mim, Marlua que é cantora de MPB, forró e atualmente tem se dedicado ao samba, as meninas do terreiro com o Samba de Crioula, as meninas do Bebo de Dola.
Ìrantì – Você transmite a influência da religiosidade afro em seus shows. Como isso vai além de simples inspirações e impacta profundamente sua arte? Pode compartilhar sobre a importância dessa conexão espiritual em sua carreira musical?
Géssica Maria – Trago inspirações da minha religiosidade, sempre faço questão de ressaltar que sou uma mulher de Candomblé, que sou uma mulher iniciada. O meu sucesso e tudo o que conquistei até aqui está pautado na minha ancestralidade religiosa do Candomblé, dentro da cultura afro. É o que me pertence. Está muito além de inspirações como outras pessoas que ficam na superficialidade. É diferente uma pessoa, energeticamente, uma pessoa que é de Candomblé e abrir a boca para cantar um samba de roda de Axé. Trazemos uma energia que é diferente, eu trago a anergia do meu orixá que pulsa em mim. Com certeza essa força que eu conseguir alcançar tem tudo a ver com Oxun em minha vida, tem tudo a ver com as energias que mim acompanham e que me dão força e alicerce para seguir.
Ìrantì – Além disso, como a representatividade das mulheres pretas no samba influencia a percepção do público e a valorização do trabalho artístico? Como você se sente percebida pelo público, especialmente em Vitória da Conquista e Rio de Contas, considerando a representatividade que você oferece para outras mulheres pretas?
Géssica Maria – Dentro do que eu tenho de representatividade de outras mulheres que me seguem e que acabam me tomando como inspiração faz com que eu seja valorizada por outras pessoas, em outros espaços e ambientes. A artista nunca é só, ela é levada por um público que a admira. Eu tenho um público vasto, mas as mulheres pretas se sentem representadas quando me veem ali numa roda de samba que só tem homens. Como já escutei: – Géssica, eu gosto tanto de te vê, você representa. Aquela coisa de saber que é um lugar que nós podemos estar, que todas nós podemos. A representatividade é excepcional para que outras mulheres pretas acreditem, para que possa estar nos lugares e busquem. Foi assim que sentir ao ouvir as mulheres pretas que admiro, ao ouvir as mulheres do samba de roda, que muitas vezes não tem visibilidade, “mas não desisto”, “eu vou conseguir”. Essa força me encantou, me tocou e vai tocar outras pessoas também. Sinto que sou percebida pelo público conquistense, de Rio de Contas, da região, e até mesmo de outras regiões, por que com as redes sociais muitas pessoas de fora fazem contato, falam que vem para Conquista para meus shows, para ver e sentir a roda de samba, isso me deixa muito… Não consigo nem expressar a alegria de saber da potência que meu canto teve, que minha força de vontade de acreditar em mim teve, das pessoas que acreditaram e que acreditam em mim, me sinto valorizada.
Ìrantì – Por fim, quais são as novidades que você está preparando para o futuro, considerando seu envolvimento no mestrado e projetos existentes? Pode falar sobre seus planos para desenvolver trabalhos autorais e como espera contribuir para a cena musical nos próximos anos?
Géssica Maria – Por estar no mestrado eu estou sustentando os projetos já existentes. Este ano tive a ousadia de levar para o Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima o “Show Bossa Negra”, um show em conjunto com o “Bossa Nossa”, onde eu interpreto artistas negros da Bossa Nova. Não aquela Bossa Nova de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes, de João Gilberto. Mas a Bossa Negra que nomeia o projeto, de Johnny Alf, Elza Soares, Alaíde Costa, Wilson Simonal, que ficou perdido por muito tempo devido a equívocos, Jorge Bem Jor que começou com a Bossa Nova. Era um momento em que estilo fazia parte da vida dos artistas não tinha como não cantar Bossa Nova entre às décadas de 1950, 1960 e até início da década de 1970. Estes artistas da Bossa Negra abriram outras possibilidades de pensamento crítico em relação ao racismo sempre presente, inclusive, musicalmente, desde sempre. É muita ousadia cantar Bossa Negra dentro do Centro de Cultura com outros artistas que não tinham proximidade com essa vertente, mas que toparam o projeto e, acredito que para os próximos anos, com certeza, com maturidade de dez anos, quero solidificar um trabalho autoral, provavelmente, para o próximo ano, estará aí um EP com sete músicas, como estou nesse ciclo de finalização do mestrado, no próximo estarei com a cabeça fresca para esses projetos que virão. Agora o foco será em algo seja meu, eu sou interprete, tenho algumas músicas autorais, vou desenvolver um trabalho autoral mais sólido.
Nossa opinião:
Ao longo da entrevista, fica evidente a resiliência e a força de Géssica Maria (28), uma mulher preta que desafia os padrões estabelecidos no cenário artístico. Sua trajetória no samba, especialmente em Vitória da Conquista, reflete não apenas o talento musical, mas também a persistência em abrir espaços e enfrentar desafios, tanto de cunho racista quanto de gênero.
A conexão profunda com a religiosidade afro se destaca como uma fonte poderosa de inspiração, indo além de simples influências, moldando a identidade artística de Géssica. A representatividade que ela proporciona para as mulheres negras no samba é evidente, refletindo não apenas em sua própria percepção pelo público, mas também na inspiração que ela se torna para outras mulheres.
A falta de incentivo do poder público ao samba regional é apontada como uma lacuna, contrastando com o crescimento e reconhecimento conquistados pela artista ao longo dos anos. Sua ousadia ao apresentar o projeto Bossa Negra e a perspectiva de desenvolver um trabalho autoral no futuro destacam seu compromisso em expandir fronteiras e consolidar sua contribuição para a música brasileira.Em síntese, a entrevista com Géssica Maria revela uma artista determinada, que não apenas enfrenta os desafios impostos pela sociedade, mas os transforma em oportunidades de crescimento. Sua história é um testemunho da importância da representatividade, da persistência e da conexão espiritual como forças motrizes na construção de uma carreira artística autêntica e impactante.
[1] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
[2] Ilé Alaketu Asé Omi T’Ogun
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