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PECUÁRIA ILEGAL PODE SER CONSIDERADA UMA DAS PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES PARA A INVASÃO E EXPLORAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL

Reportagem especial – Parte 1.

O Brasil destaca-se como um dos principais produtores e exportadores de carne globalmente. Contudo, é essencial analisar o crescimento da pecuária bovina, considerando sua conexão significativa com o cerceamento dos direitos dos povos tradicionais. O avanço desse setor muitas vezes está associado a questões como desmatamento, invasões de terras indígenas e conflitos socioambientais.

Aos indígenas é assegurado o respeito às tradições, cultura, auto-organização e usufruto exclusivo das próprias terras, como prevê o artigo 231 da Constituição Federal e o Estatuto do Índio. No entanto, a maior parte das terras indígenas (TIs) é afetada de alguma forma pela presença de invasores e exploradores. Entre as motivações estão a exploração mineral, extração de madeira, construção de rodovias e hidrelétricas e a pecuária ilegal, que tem crescido substancialmente nos últimos anos.

A criação e venda de animais para a produção de alimentos ou matérias-primas é considerada uma das atividades econômicas de maior relevância no Brasil. Um levantamento elaborado pela Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas (Sire) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) destacou que, em 2020, o rebanho bovino brasileiro foi o maior do mundo, representando 14,3% do rebanho mundial, com 217 milhões de cabeças.

Ao revés desse crescimento, denúncias de práticas ilegais no ramo têm sido recorrentes. Entre elas, a invasão de TIS para implantação de pastagens bovinas. De maio de 2022 a março de 2023 pelo menos cinco casos do tipo vieram à tona.

No primeiro semestre de 2022, um levantamento feito pelo Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, na sigla em inglês) identificou um rebanho de 25.482 animais criados em fazendas ilegais dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. No local foi possível identificar uma área de mais de 13,4 mil hectares desmatados. Segundo reportagem da Infoamazonia1, a carne oriunda dos bois criados nessa TI abasteceu os frigoríficos da JBS e foi comercializada por supermercados do grupo Casino Guichard-Perrachon, que no Brasil controla as redes Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper.

Em agosto do mesmo ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apreendeu um rebanho bovino com 187 cabeças no interior da TI Cachoeira Seca, no estado do Pará. Dias depois, outra situação semelhante veio a público, uma reportagem do UOL revelou que grandes empresas multinacionais, a exemplo da Nestlé, estavam envolvidas na compra de carne bovina produzida em um território disputado pelo povo indígena Myky, em Mato Grosso (MT).

A TI Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), foi considerada a mais desmatada entre os territórios indígenas do país, conforme relatórios do Instituto Socioambiental (ISA). Uma pesquisa do MapBiomas, solicitado pelo Repórter Brasil,apontou que cerca de 98% da floresta destruída na área deu lugar ao pasto para criação de bovinos, que abastecem grandes frigoríficos como JBS e Frigol.

Em março de 2023, uma reportagem da Carta Capital destacou a presença de um rebanho de aproximadamente dez mil bois criados clandestinamente dentro da TI Ituna Itatá, situada na divisa dos municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no Pará (PA). Localizada as margens do rio Xingu, a Ituna Itatá é um território que vem sendo ocupado por grileiros e bois há anos. Entre 2008 e 2021, mais de 22 mil hectares foram desmatados. De acordo com o Ibama, os gados oriundos desta localidade são comercializados sem a emissão de Guia de Trânsito de Animais (GTAs), documento que garante que os animais foram vacinados.

O Ministério Público Federal (MPF), unidade do Pará, informou que a principal medida utilizada para combater a pecuária ilegal em TIs no estado tem sido “a realização de termos de ajustamento de condutas que obrigam os frigoríficos a verificar se a origem da carne comprada é legal”.

O MPF de Rondônia enfatizou que “acompanha a implementação das políticas públicas que visam proteger as terras indígenaspor meio de permanentes contatos com lideranças indígenas, com a Funai e Polícia Federal”. Além disso, “na pessoa de procuradores da República, assessores e técnicos em segurança e transporte, realiza visitas periódicas e permanentes às terras indígenas, oportunidade em que visualiza, in loco, os problemas e as demandas trazidas pelas comunidades”. O órgão destacou ainda que “a extensão das terras indígenas no estado, a dificuldade de acesso a elas, o que permitiria constante monitoramento, a dificuldade de identificação e responsabilização criminal dos autores e a falta de compartilhamento de GTAs emitidas pela Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril  (IDARON) têm sido alguns dos principais desafios para a proteção das terras indígenas no estado”.

A conivência do Estado e a ocultação dos dados

O relatório “Violência contra os Povos indígenas no Brasil”, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), evidenciou que os casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais em TIs quase triplicaram durante a gestão de Jair Bolsonaro. Conforme o estudo, entre os anos de 2019 a 2021, foram identificados 305 casos de invasões e danos ao patrimônio em pelo menos 226 TIs de 22 estados brasileiros.

“O contexto geral de ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas está relacionado a uma série de medidas do poder Executivo que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas e à atuação do governo federal e de sua base aliada para aprovar leis voltadas a desmontar a proteção constitucional aos povos indígenas e seus territórios”, diz nota do Cimi.

Entre essas ações o documento destaca: a Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em 2020, que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas, e a Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama que, em 2021, passou a permitir a exploração econômica de terras indígenas por associações e organizações de “composição mista” entre indígenas e não indígenas. Além do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e abre as terras já demarcadas à exploração predatória.

A falta de transparência e o uso irregular da LGPD e LAI têm cooperado para ocultar informações sobre invasões de terras indígenas para criação de gado bovino.O dossiê divulgado pelo portal De Olho nos Ruralistas revelou uma série de ataques perpetrados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro contra a transparência pública e o acesso a dados ambientais durante seu mandato. O documento evidencia um notável retrocesso nas políticas de transparência e proteção ambiental adotadas pelo governo brasileiro.

Uma das principais ações destacadas foi a extinção do Comitê Gestor do Fundo Amazônia, órgão de extrema importância na gestão de recursos destinados à preservação da Amazônia e ao financiamento de ações de combate ao desmatamento e às queimadas. Essa medida levantou preocupações sobre a falta de apoio financeiro para iniciativas essenciais voltadas à proteção da maior floresta tropical do mundo.

Além disso, o dossiê revelou mudanças prejudiciais nos órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental. Bolsonaro nomeou indivíduos com histórico de atuação contrária à proteção ambiental para cargos-chave, enfraquecendo a eficácia dessas instituições. Essas nomeações geraram dúvidas sobre a capacidade dos órgãos ambientais de exercerem suas funções de forma independente e eficiente.

Outro aspecto destacado pelo documento foi o constante ataque retórico de Bolsonaro a instituições de pesquisa, organizações não governamentais e movimentos sociais engajados na defesa do meio ambiente. O ex-presidente frequentemente questionava a credibilidade dessas entidades e desvalorizava dados científicos que contrariavam sua visão. Essa postura alimentou um clima de desconfiança e descrédito em relação às informações ambientais divulgadas por especialistas.

As consequências dessas ações foram graves para o avanço da transparência pública e a proteção do meio ambiente no Brasil. A falta de acesso a informações confiáveis e o enfraquecimento dos órgãos ambientais comprometeram a implementação de políticas eficazes de preservação, dificultando o combate a problemas urgentes, como o desmatamento ilegal e a degradação dos ecossistemas.

O dossiê enfatizou a importância da transparência e do acesso a dados para a promoção da democracia e a tomada de decisões informadas. Além disso, ressaltou a necessidade de fortalecer os órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental, assegurando que tivessem recursos adequados e independência para desempenhar seu papel fundamental na proteção dos recursos naturais do país.

Em resposta às revelações apresentadas no dossiê, a sociedade civil e os defensores do meio ambiente exigiram que a administração vigente adotasse medidas concretas para fortalecer a transparência pública, garantir o livre acesso a informações ambientais e promover políticas efetivas de proteção dos ecossistemas brasileiros.

No entanto, durante o período abordado pelo dossiê, não foram observadas iniciativas significativas por parte do governo para atender a essas demandas. As preocupações levantadas pela sociedade civil e pelos defensores do meio ambiente foram amplamente ignoradas, o que exacerbou as consequências negativas das ações de Bolsonaro.

A extinção do Comitê Gestor do Fundo Amazônia teve um impacto direto na redução dos recursos disponíveis para combater o desmatamento e as queimadas na Amazônia. Organizações não governamentais e instituições de pesquisa, que desempenhavam um papel fundamental na proteção ambiental, foram constantemente alvo de ataques verbais e descredibilização por parte do ex-presidente.

Essas atitudes minaram a confiança da comunidade internacional e prejudicaram a cooperação e o apoio financeiro para a preservação da Amazônia. Além disso, as mudanças nos órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental resultaram em um enfraquecimento da capacidade do governo de combater efetivamente o desmatamento ilegal e outras atividades prejudiciais ao meio ambiente.

O dossiê também evidenciou a negligência em relação aos dados científicos que embasam as políticas ambientais. Bolsonaro continuou a desconsiderar informações científicas sólidas, promovendo teorias infundadas e baseadas em desinformação. Essa postura anti-científica prejudicou a elaboração de políticas baseadas em evidências e comprometeu a eficácia das ações de proteção ambiental.

Enquanto isso, a sociedade civil e os defensores do meio ambiente intensificaram seus esforços para preencher a lacuna deixada pelo governo. Organizações não governamentais, movimentos sociais e cientistas independentes uniram-se para promover a transparência, fornecer informações confiáveis e pressionar por políticas de proteção ambiental mais robustas.

No entanto, o dossiê deixa claro que uma mudança real só poderá ser alcançada por meio de uma ação governamental firme e comprometida com a transparência e a proteção ambiental. É essencial que o governo atual ou futuras administrações adotem uma postura proativa na promoção da transparência pública, garantindo o acesso irrestrito a dados ambientais e fortalecendo os órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental.

Somente assim será possível reconstruir a confiança, tanto interna quanto externamente, na capacidade do Brasil de enfrentar os desafios ambientais e garantir um futuro sustentável para o país e as gerações futuras. O dossiê serve como um alerta para a importância crítica da transparência e da responsabilidade governamental na proteção do meio ambiente e na busca pela sustentabilidade. É fundamental que a sociedade continue vigilante e exija medidas concretas para reverter os retrocessos e promover uma agenda ambiental comprometida e transparente.

A falta de transparência e o uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e da Lei de Acesso a Informações (LAI) são fatores que também têm prejudicado a fiscalização ambiental e ocultado informações relevantes sobre invasões de terras indígenas relacionadas ao ciclo produtivo do gado bovino na Amazônia Legal.

Segundo uma investigação realizada pelo Repórter Brasil, divulgada e repostada pelo Brasil de Fato, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), órgãos federais responsáveis pela conservação e policiamento ambiental, enfrentam dificuldades para acessar guias de movimentação de gado e cadastros de criadores na Amazônia Legal, o que compromete, por exemplo, a identificação de irregularidades ambientais.

De acordo com o levantamento, somente o estado do Pará disponibiliza de maneira mais efetiva acesso às informações relacionadas à movimentação do gado e ao cadastro de criadores. Nos outros oito estados da região amazônica (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Tocantins), a falta de transparência impede a identificação de diversas irregularidades, como atividades de pecuária em unidades de conservação1.

A pecuária desempenha um papel relevante na degradação ambiental da Amazônia, com a abertura de áreas para pastagens e o desmatamento para a produção de alimentos destinados ao gado. A ausência de fiscalização efetiva e a falta de acesso aos registros de movimentação do gado e aos cadastros de criadores dificultam a identificação da origem dos animais e a detecção de crimes ambientais.

Ainda segundo dados da investigação do Repórter Brasil, o ICMBio conseguiu identificar atividades de pecuária irregular em unidades de conservação, resultando em 730 autos de infração e multas no valor de R$ 206,3 mil desde fevereiro de 2022. Esses resultados foram obtidos graças ao acesso concedido pelo estado do Pará às referências da pecuária.

Os dados da pecuária são de responsabilidade das agências estaduais de defesa agropecuária, que coletam e administram informações cadastrais dos criadores, além de controlar a movimentação de gado por meio das Guias de Trânsito Animal (GTAs). Esses documentos obrigatórios registram deslocamentos de animais e fornecem informações relevantes, como origem, destino, finalidade, quantidade, faixa etária e sexo do gado. Mas o acesso a essas informações é restrito e não está disponível para autoridades públicas e órgãos de fiscalização ambiental na maioria dos estados da Amazônia Legal. A investigação do Repórter Brasil, em sintonia com as reportagens do Brasil de Fato, destaca que cruzar essas informações com mapas de propriedades, embargos e pontos de desmatamento possibilita a identificação de responsáveis por irregularidades, inclusive situações de “lavagem de gado”.

Apesar da importância desses dados, o acesso a eles é restrito na maioria dos estados da Amazônia Legal. O Ministério da Agricultura e as agências estaduais justificam que as GTAs têm foco no controle sanitário e não querem misturar informações ambientais. Especialistas, como Paulo Barreto, do Imazon, argumentam que a transparência aumentaria a confiança no controle sanitário e ambiental, especialmente considerando que estima-se que 90% da área desmatada na Amazônia tenha sido convertida em pasto, ressaltando a relevância desses dados para a preservação ambiental.

“Se bases de dados como das Guias de Trânsito Animal (GTA), que trazem informações sobre a movimentação do gado, fossem abertas à sociedade, assim como os dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – que ainda tem uma transparência parcial dos dados-, seria possível desenvolver ferramentas de rastreabilidade que auxiliaria no controle do desmatamento associado à cadeia da pecuária, inclusive, desmatamento em áreas protegidas”, atesta Marcondes Coelho, Mestre em Ciências Ambientais e Florestais e Analista Socioambiental no Instituto Centro de Vida (ICV).

O monitoramento dos fornecedores de gado pelos frigoríficos também é falho, contribuindo para as irregularidades na cadeia da carne. A transparência dos dados das guias de movimentação de gado também poderia auxiliar na identificação dos atores envolvidos.

“Ainda falta transparência na cadeia da pecuária. Sem dados abertos sobre a rastreabilidade, as estratégias para combater o desmatamento na cadeia e a invasão de áreas protegidas ficam limitadas. Os sistemas de monitoramento atuais, implementados pelos frigoríficos, como resposta aos acordos da cadeia da carne, ainda são insuficientes, pois não incluem fornecedores indiretos, o que acaba abrindo brechas para ‘lavagem’ do gado”, conclui Marcondes Coelho.

As lacunas na implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público eletrônico dos imóveis rurais de todo o país, que é auto-declaratório, acabam por beneficiar a grilagem de terras. “Sabemos que existe uma prática de invasão de terras públicas e indígenas para o desenvolvimento de atividades econômicas, que normalmente começa com a exportação de madeira ilegal e, depois, avança para a criação de gado. Muitas vezes, esses invasores fazem declarações no CAR, como se a posse da terra fosse legítima e isso acaba facilitando a grilagem. A ABRAMPA e o IPAM vêm se posicionando institucionalmente sobre o tema, pois essas sobreposições de CAR a terras indígenas podem ser identificadas e devem ser alvo de atuação dos órgãos ambientais e de terra, para que esses cadastros sejam anulados. O próprio CAR é um sistema que precisa de aprimoramento técnico e de mais transparência, para facilitar o controle social da grilagem”.  reconhece Alexandre Gaio,  Presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), para o triênio 2022-2025.

É importante ressaltar que essas informações foram obtidas por meio de uma reportagem conduzida pelo Repórter Brasil e posteriormente divulgada também pelo Brasil de Fato. Através do exercício da Lei de Acesso à Informação, esses veículos de comunicação trouxeram à tona a preocupante realidade da falta de acesso aos dados da pecuária, o que compromete diretamente a fiscalização e o combate a práticas ilegais na região amazônica.

Nossa opinião

O Brasil destaca-se como um dos principais produtores e exportadores de carne globalmente. Contudo, é essencial analisar o crescimento da pecuária bovina, considerando sua conexão significativa com o cerceamento dos direitos dos povos tradicionais. O avanço desse setor muitas vezes está associado a questões como desmatamento, invasões de terras indígenas e conflitos socioambientais.

O aumento da produção de carne no país frequentemente resulta em expansões territoriais da pecuária, levando ao desmatamento de áreas florestais para dar lugar a pastagens. Esse processo impacta diretamente os territórios ocupados por povos tradicionais, causando a perda de seus modos de vida, recursos naturais e, em alguns casos, a desestruturação de comunidades inteiras.

Além disso, o avanço da pecuária bovina também está associado a tensões e conflitos territoriais, especialmente em regiões onde comunidades tradicionais resistem à invasão de suas terras. A competição por recursos naturais, como água e terra, muitas vezes resulta em disputas prejudiciais para os povos tradicionais, que veem seus direitos sendo cerceados em meio a interesses econômicos.

Diante desse cenário, é imperativo que a discussão sobre o crescimento da pecuária bovina no Brasil inclua uma análise crítica dos impactos sociais e ambientais associados a essa expansão. É fundamental considerar alternativas sustentáveis e promover práticas que respeitem os direitos dos povos tradicionais, garantindo uma abordagem equilibrada e ética no desenvolvimento desse importante setor econômico.

Disponível em: https://brasildefatorj.com.br/2023/05/09/falta-de-acesso-a-dados-da-pecuaria-e-obstaculo-a-fiscalizacao-ambiental-na-amazonia.

1 Disponível em: https://infoamazonia.org/2022/05/31/rastreamento-aponta-gado-ilegal-em-terra-indigena-vai-para-prateleiras-do-assai-e-pao-de-acucar/.

Justiça

Juízes negros ainda representam uma minoria, no entanto, sua presença também abre portas para novas oportunidades e perspectivas

Primeira Parte

Se passaram quase 140 anos desde a histórica Abolição da Escravatura no Brasil, um marco conquistado graças ao engajamento popular e à resistência dos próprios escravizados. Contudo, as cicatrizes desse período ainda reverberam nas estruturas da sociedade brasileira contemporânea. Dos corredores da educação básica até os bancos universitários, fica evidente que há um longo caminho a percorrer na busca por equidade racial.

O cenário educacional brasileiro, quando observado de perto, reflete as disparidades que persistem. Apesar dos avanços proporcionados por políticas educacionais e a implementação de cotas, especialmente nas universidades públicas e privadas, a presença negra ainda não se equipara à sua representatividade na população.  Ao focalizarmos a trajetória acadêmica, é possível constatar que a batalha pela inclusão está longe de ser vencida. O aumento da presença negra nas universidades é uma conquista inegável, mas é imperativo expandir o debate para outras esferas, como o acesso a cargos públicos.

É crucial abordar a questão das vagas reservadas para pessoas negras em concursos públicos. Embora existam iniciativas nesse sentido, a proporção de oportunidades ainda é desproporcional em relação à relevância desse grupo na demografia brasileira. Ainda que as portas estejam entreabertas, a jornada para se tornar um servidor público, alcançar posições de destaque, como a de juiz de direito em um Tribunal de Justiça, é árdua e repleta de desafios. Nesse contexto, dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançam luz sobre a realidade enfrentada por indivíduos negros que aspiram a carreiras jurídicas. Estes números revelam não apenas a escassez de representatividade, mas também os obstáculos estruturais que persistem, dificultando a ascensão desses profissionais a cargos de influência.

Em um momento em que a sociedade reflete sobre seu passado e busca construir um futuro mais igualitário, torna-se essencial continuar esse diálogo, não apenas na esfera educacional, mas também no âmbito dos concursos públicos e das carreiras de prestígio. Somente reconhecendo e enfrentando esses desafios de frente, podemos aspirar a uma sociedade verdadeiramente justa e inclusiva, honrando o legado daqueles que lutaram pela liberdade há quase 140 anos?

De acordo com o diagnóstico étnico-racial de 2022, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, a magistratura nacional apresenta uma representatividade de 83,3% de magistrados negros, enquanto 12,8% são negros-pardos e 1,7% são negros-pretos. No entanto, ao se fazer um recorte específico para a Bahia, observa-se uma proporção significativa de 41,8% de magistrados que se identificam como negros-pardos e negros-pretos no Tribunal de Justiça local. Esse número se mantém relevante na Justiça do Trabalho (40%) e no Tribunal Regional Eleitoral (43,3%).

O que diz o Conselho Nacional de Justiça?

Segundo Wanessa Mendes de Araújo, juíza auxiliar da Presidência do CNJ, embora a Bahia se destaque na representatividade racial da magistratura, é essencial considerar não apenas a média nacional, mas também a demografia local. A análise precisa levar em conta não apenas a população brasileira como um todo, mas a peculiaridade do estado baiano, onde a maioria é composta por pessoas negras: “Se compararmos o perfil racial da magistratura nacional, os números sugerem que a Bahia encontra-se em posição destacada, porém, é necessário trazer a análise para o perfil racial, quer da população brasileira, quer da população local, isso porque de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” destaca a magistrada.

Uma análise comparativa ganha relevância ao confrontar esses dados com a realidade racial da população brasileira e baiana. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% da população brasileira se declara negra. No entanto, na Bahia, esse percentual sobe para 81,1%, indicando que o estado possui uma das maiores presenças de população negra do país.

Ao relacionar essas estatísticas com a composição racial da magistratura baiana, os números sugerem uma representatividade mais expressiva do que a média nacional. Entretanto, é crucial contextualizar esses dados à realidade local, considerando que 19,9% da população baiana se declara branca. Nesse aspecto, a presença de pessoas brancas representa 58,2% na Justiça Estadual e 60% na Justiça do Trabalho. Diante do desafio de promover a presença efetiva de juízes negros na magistratura baiana, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Karen Luise de Souza, destaca a importância de ir além das cotas, enfatizando a necessidade de fornecer condições de concorrência e estudo. Mas como isso poderia ser implementado de maneira eficaz no contexto específico do estado da Bahia?

A resposta a essa indagação encontra respaldo na iniciativa do Ministro Luís Roberto Barroso, anunciada durante a I Jornada da Justiça e Equidade Racial. Barroso propôs a criação de bolsas de estudos remuneradas, com duração de dois anos, destinadas a candidatas(os) negras(os) interessadas em se dedicar aos estudos para o concurso da magistratura. Essa proposta busca superar as limitações das cotas isoladas, reconhecendo que, mesmo com tais medidas, o preenchimento efetivo da cota racial demanda um tempo considerável, aproximadamente 30 anos nas condições atuais.

O Conselho Nacional de Justiça, ao analisar a eficácia das cotas, concluiu que é crucial envidar esforços concretos para capacitar as(os) candidatas(os) negras(os), proporcionando-lhes melhores condições de concorrência. Nesse sentido, a iniciativa das bolsas de estudo surge como uma estratégia para acelerar esse processo, possibilitando uma preparação mais sólida e eficaz. 

É imperioso que ações como essa sejam encapadas por outras entidades, públicas e privadas, pois está claro que há um obstáculo substancial, notadamente em termos sócio-econômicos, que inviabilizam o acesso das pessoas negras a concursos do nível da magistratura.afirma Wanessa Mendes de Araújo. 

Entretanto, para a juíza auxiliar, é imperativo que ações como essa sejam apoiadas e implementadas não apenas pelo CNJ, mas também por outras entidades, tanto públicas quanto privadas. A necessidade de uma abordagem abrangente é evidente, especialmente considerando os obstáculos substanciais, sobretudo de natureza sócio-econômica, que dificultam o acesso das pessoas negras aos concursos de alto nível, como o da magistratura.

Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revela que a maioria da população negra na Bahia enfrenta condições precárias no mercado de trabalho, muitas vezes atuando na informalidade e percebendo renda insuficiente para conciliar trabalho e estudos. Homens negros, em média, percebem R$ 1.540,00, enquanto as mulheres negras recebem R$ 1.334,00, o que evidencia as disparidades econômicas que precisam ser endereçadas para promover uma competição mais justa e igualitária no acesso à magistratura.

Assim, o caminho para uma magistratura verdadeiramente representativa na Bahia passa não apenas pela implementação de cotas, mas pela criação de oportunidades tangíveis, como bolsas de estudo remuneradas, e pela atuação coordenada de diversos setores da sociedade na promoção da igualdade de condições para todos os aspirantes a uma carreira judicial. Essas medidas não apenas aceleram a inclusão, mas também fortalecem a diversidade e a legitimidade do Poder Judiciário no estado. Ao analisar  o surpreendente índice de 61% de magistrados negros no Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, revelado pelo recente Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, surge a questão crucial: como seria possível replicar estratégias bem-sucedidas desse tribunal na Bahia, visando aumentar a representatividade racial na magistratura?

De acordo com juíza Wanessa Mendes de Araújo,  o diagnóstico não detalha as estratégias específicas adotadas pelos tribunais para promover a inserção de magistrados negros. No entanto, destaca uma medida de destaque que pode ser considerada como um exemplo a ser seguido. Por outro lado, o Fórum Nacional para Equidade Racial, criado por meio da Resolução n°490 de 8 de março de 2023, desempenha um papel fundamental na elaboração de estudos e proposição de medidas concretas para aprimorar o sistema de justiça em relação à equidade racial. 

Fomentando a Equidade na Magistratura Baiana

Questionada sobre a possibilidade de replicar o sucesso do Amapá na Bahia, a magistrada afirma que seria fundamental que o estado adotasse medidas similares. Implementar políticas que eliminem barreiras excessivas nas primeiras fases dos concursos pode ser crucial para garantir a participação efetiva de candidatos negros, permitindo que avancem e compensem diferenças históricas e sociais que impactam suas oportunidades de preparação.

Essa iniciativa nacional é complementada por medidas específicas adotadas em concursos para a magistratura. O artigo 2º, § 3º, da Resolução n°2023/2015, com nova redação dada pela Resolução n°516/2023, proíbe cláusulas de barreira para candidatos negros. Bastando o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência, ou seja, nota 6,0 nos concursos da magistratura, para que os candidatos cotistas avancem para as fases subsequentes.  Para a magistrada, a importância dessa medida para assegurar que pessoas negras não sejam excluídas dos certames, especialmente nas fases iniciais, onde as notas de corte frequentemente superam a nota geral de 6,0. Essa política representa a superação de um importante obstáculo ao acesso às fases seguintes e à aprovação.  Para a magistrada,

“Essa medida tem o importante papel de assegurar que as pessoas negras não sejam excluídas dos certames, em especial, nas primeiras fases por não atingir notas de corte que costumam ser superiores à nota geral de 6,0, o que representa a transposição de um importante obstáculo ao acesso às fases seguintes e à aprovação.” 

Além disso, promover a transparência sobre as estratégias adotadas pelo Tribunal de Justiça do Amapá, e por outros tribunais que apresentam sucesso na promoção da diversidade racial, pode inspirar o desenvolvimento de políticas locais na Bahia. Uma abordagem coordenada entre instituições, a exemplo do Fórum Nacional para Equidade Racial, também pode ser um caminho promissor para a criação de políticas inclusivas e o estabelecimento de padrões de equidade racial na magistratura baiana. Dessa forma, ao aprender com experiências positivas em outros estados, a Bahia pode pavimentar o caminho para uma magistratura mais representativa, inclusiva e condizente com a diversidade do povo brasileiro.

A questão da baixa representatividade de mulheres negras em cargos de chefia na Justiça é um desafio que demanda medidas efetivas para promover maior equidade de gênero e raça. Diante desse cenário, questionamos como as iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, como a Resolução CNJ n. 203/2015, poderiam ser aprimoradas para impulsionar esses objetivos no contexto do estado da Bahia. 

A magistrada enfatiza ainda,  a importância da Resolução n°203/2015, que trata da reserva de vagas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Ela destaca que a resolução também permite que os tribunais instituam mecanismos de ação afirmativa para garantir o acesso de pessoas a cargos em comissão e funções comissionadas. Além disso, a magistrada aponta para a Resolução CNJ n° 255, de 4 de setembro de 2018, que reforça a necessidade de medidas para promover a igualdade de gênero no Poder Judiciário.

Ambas as normativas, segundo a magistrada, delineiam diretrizes e mecanismos que orientam os órgãos judiciais a incentivar a participação das mulheres nos cargos de chefia, assessoramento, bancas de concurso e como expositoras em eventos. Ela destaca que essas normas têm um enfoque duplo, promovendo não apenas a equidade de gênero, mas também a equidade racial, incluindo a efetiva participação das mulheres negras nos espaços de poder.

Nesse contexto, a magistrada enfatiza a necessidade de buscar a efetivação dessas normas do Conselho Nacional de Justiça. A adoção das ações afirmativas já contempladas nos normativos é apontada como crucial para garantir a concretização dos objetivos de equidade de gênero e raça. No entanto, a magistrada sugere que há um caminho a percorrer na implementação dessas medidas, ressaltando a importância de ações práticas para superar os desafios existentes.

O contexto baiano, assim como em outros estados, requer uma abordagem específica para enfrentar as barreiras à ascensão de mulheres, especialmente mulheres negras, aos cargos de liderança na Justiça. Portanto, a busca pela efetivação das normas do CNJ, aliada à implementação de ações afirmativas tangíveis, é essencial para transformar as intenções dessas resoluções em resultados concretos, proporcionando uma representação mais justa e diversificada nos órgãos judiciais da Bahia.

Nossa opinião 

Essas  discussões instigam a reflexão sobre a importância da diversidade racial no Poder Judiciário e a necessidade de políticas que promovam a equidade em todas as instâncias. A Bahia, mesmo em posição destacada, enfrenta desafios que demandam um olhar atento e estratégias específicas para fortalecer a representatividade racial na magistratura. Ao finalizar esta análise aprofundada sobre a representatividade racial na magistratura, fica evidente que a Bahia se destaca, mas o caminho em direção a uma justiça verdadeiramente representativa ainda apresenta desafios significativos.

Os dados do CNJ revelam avanços notáveis, mas também indicam que, mesmo em uma posição destacada, a magistratura baiana deve continuar aperfeiçoando suas estratégias para promover uma inclusão mais abrangente. As experiências positivas de outros estados, como o Amapá, e as propostas inovadoras, como as bolsas de estudos remuneradas, oferecem insights valiosos para moldar políticas eficazes. 

Ao destacar a importância de considerar a demografia local, a juíza Wanessa Mendes de Araújo ressalta que a luta pela equidade racial na magistratura não é uma jornada isolada e requer a colaboração de entidades, a adaptação a peculiaridades regionais e o compromisso contínuo com a diversidade e inclusão.

Portanto, a Bahia está diante de uma oportunidade crucial de liderar o caminho em direção a uma justiça que verdadeiramente reflita a diversidade de sua população. A busca por uma magistratura mais representativa não é apenas uma aspiração, mas um imperativo para garantir que a justiça seja acessível, imparcial e alinhada aos princípios fundamentais de uma sociedade igualitária. Ao enfrentar os desafios com determinação e inovação, a Bahia pode se tornar um modelo inspirador para todo o país, construindo um Poder Judiciário que verdadeiramente representa e serve a todos os cidadãos.

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Samba, Cultura Afro e Resistência: Uma conversa com Géssica Maria

Géssica Maria Silva São José, natural de Rio de Contas, Bahia. Com 27 anos, ela é uma mulher preta, historiadora formada pela UESB em 2021, atualmente mestranda em Memória: Linguagem e Sociedade na mesma instituição. Além de cantora e compositora, Géssica destaca-se como ativista social, candomblecista e feminista, fazendo parte do cenário artístico de Vitória da Conquista.

Seu envolvimento artístico inclui participações em shows e eventos locais, destacando-se em tributos a artistas como Clara Nunes e Elza Soares. Ela é idealizadora do projeto de samba Sambodara desde 2015 e do projeto Bossa Nova em 2021. Atualmente, integra o projeto Quintas do Samba e planeja lançar seu primeiro EP neste ano.

Na área acadêmica, suas pesquisas foram direcionadas ao feminismo negro e à educação contra-hegemônica no Brasil. Seu trabalho de conclusão de curso focou na comunidade quilombola de Barra em Rio de Contas, rendendo um artigo a ser publicado no livro Narrativas Ancestrais. Géssica também cursa Psicopedagogia na FASU em Vitória da Conquista e participou de diversas apresentações musicais em eventos acadêmicos.

Iniciada no candomblé para o orixá Ósun, Géssica se identifica como Dofona de Oxum no terreiro Omi T’Ogun. Sua jornada espiritual iniciou em Vitória da Conquista, onde promoveu eventos culturais e ações sociais, como o Sarau Cultural e o Sopão Solidário. Aos 28 anos, Géssica Maria é uma figura multifacetada, unindo sua paixão pela música, ativismo social, pesquisa acadêmica e espiritualidade em uma trajetória rica e diversificada.

Esta entrevista com Géssica Maria (28) oferece uma visão rica e detalhada de sua trajetória como cantora e pesquisadora, destacando seu profundo envolvimento com a cultura afro-brasileira e o samba. Como uma mulher preta e iniciada no Candomblé, Géssica como é porpularmente conhecida na cidade de Vitória da Conquista e adjacências,  compartilha suas experiências desafiadoras e triunfos ao abrir caminho no cenário musical, especialmente em Vitória da Conquista e Rio de Contas, sua terra natal. Sua dedicação ao samba e sua busca por representatividade são evidentes, e ela oferece uma perspectiva valiosa sobre o papel das mulheres pretas no cenário artístico e sua importância na preservação e promoção da cultura afro-brasileira. Além disso, Géssica compartilha suas futuras aspirações, incluindo um projeto autoral que promete consolidar ainda mais sua influência no mundo da música. Esta entrevista oferece uma visão inspiradora de uma artista talentosa e comprometida com sua herança cultural e espiritualidade.   

Ìrantì – Por que você decidiu se mudar para Vitória da Conquista no final de 2012 e qual foi a motivação por trás dessa mudança?

Géssica Maria – Vim para Vitória da Conquista no final do ano de 2012, ao término do ensino médio. Eu vim para estudar. Tinha o sonho de sair para fazer faculdade, Rio de Contas, uma cidade pequena, tem ainda essas limitações no ensino superior. Em 2013 fiz cursinho pré-vestibular, estudava pela manhã e trabalhava à tarde para pagar o cursinho. Conseguir passar na Uesb[1], tinha o foco de passar em Matemática, em 2014, comecei a cursar Matemática, já descobrindo na passagem do segundo ao terceiro semestre que iria para o curso de História, então, fiz novamente o vestibular para História e estou até hoje.

Ìrantì – Como se deu o início da sua jornada como cantora, considerando o atravessamento de sua vida acadêmica com a carreira artística?

Géssica Maria – Paralela a minha vida acadêmica eu desenvolvi a minha carreira artística na cidade, logo que aqui cheguei recebi um convite para trabalhar com o público infantil, através de uma antiga professora que tive no ensino fundamental e médio, que me convidou para fazer parte de um projeto para crianças, entre os anos de 2013 e 2014 fiquei envolvida neste projeto, cantava músicas para crianças. Sendo que ela me fez este convite porque quando em Rio de Contas, eu atuava no teatro, nos festivais. Sempre fui participativa em tudo na escola e, como ela sabia disso, acabou me dando esta oportunidade. Em 2014 eu comecei uma caminhada mais profissional, fazendo back vocal para o cantor Ítalo Silva no “Tambor brasileiro”, show apresentado no Teatro Carlos Jehovah; participei do “Por isso é que eu canto”, concurso de música promovido pela Prefeitura de Vitória da Conquista. Em 2015 começo a cantar nos barzinhos, tive meu primeiro show sozinha no Teatro Carlos Jehovah com o “Canto das três raças”.

Ìrantì – Por que o samba exerce um impacto tão profundo em você, tanto musicalmente quanto espiritualmente?

Géssica Maria – É uma vertente que me toca, musicalmente falando, mesmo apreciando outros ritmos, em se tratando de Brasil é impossível se fechar em um único ritmo, mas o samba pulsa dentro de mim, no meu coração, mexe profundamente com minhas emoções, tem muito a ver com minha vida espiritual. Esse entendimento eu fui ter tempos depois. Desde pequenininha eu fazia parte das rodas de sambas em Rio de Contas, do samba do Mendengó do Quilombo de Barra, localizado em Rio de Contas, Bahia e de outras manifestações: reisado, que tinha na cidade. Eu me lembro que amava fazer parte, ficava encantada com os sons, as cores, com a nossa cultura tão rica. O samba toca meu coração desde pequenininha. Ouvia com minha vó os discos que ela tinha de Clara Nunes, de Jackson do Pandeiro.

Ìrantì – Géssica, como foi sua introdução ao samba do Mendengó do Quilombo de Barra e o que motivou sua pesquisa desde a graduação até o mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade? Poderia explicar as características específicas desse samba, sua relevância como forma de resistência e sua conexão com a história e cultura dos quilombolas em Rio de Contas e áreas próximas, como Barra, Bananal e Riacho das Pedras? Além disso, gostaria de entender como a palavra “mendengó”, com raízes nagô/bantu, se transformou em um símbolo significativo de resistência cultural ao longo do tempo.

Géssica Maria – Eu desenvolvi uma pesquisa sobre o samba do Mendengó do Quilombo de Barra, desde a minha graduação, foi um projeto que me dediquei desde o ano de 2019 até 2021 e continuo a pesquisar também no Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade. O samba que me moveu a pesquisar o Quilombo de Barra depois eu expandir para outras possibilidades: o artesanato, a religiosidade, a educação. O samba do Mendengó traz sua especificidade, a célula que só faz parte daquela região, é muito particular. É um samba lindo; é um samba de resistência é o que mais aproxima os quilombolas do momento em que seus antepassados chegam em Rio de Contas, que pisaram naquela terra. O samba do Mendengó se mantem até os dias de hoje, a própria palavra mendengó de origem nagô/bantu é o próprio símbolo do “eu resistir, a minha cultura africana está aqui”. Com catequese sem catequese, passando pela escravização, o samba do Mendengó está ali. É o mesmo com o Candomblé na Bahia e em outras regiões do Brasil, é a sobrevivência de um povo. O samba do Mendengó não é só um samba, é um quilombo, são os quilombos de Rio de Contas, Barra, Bananal, Riacho das Pedras, é a célula viva do símbolo maior de resistência. Nessa pesquisa conheci Bezinha, uma das lideranças do samba de roda de lá, uma mulher preta, fantástica, que foi professora da comunidade, responsável por formar os seus, é artesã, que traz a história do quilombo junto com ela, sua história me inspira.  

Ìrantì – Como é apresentar uma cultura quilombola na academia, considerando a responsabilidade de representar cada quilombo com sua história específica? Como você lida com as limitações da academia, que ainda é elitista e eurocêntrica, ao trazer uma cultura quilombola, em especial a de Rio de Contas, para discussão? Além disso, como sua própria experiência como mulher preta, neta de lavadeira e filha de dona de casa, molda sua abordagem ao estudar e apresentar a cultura quilombola?

Géssica Maria – Levar para o mundo acadêmico a cultura quilombola é muita responsabilidade, cada quilombo tem sua história, a história de sua região, então quando a gente estuda o sertão da Bahia que ainda há relatos históricos que estão muitos guardados e ainda não foram alcançados pela academia e por eu ser de Rio de Contas me traz satisfação de poder discutir e trazer o povo de lá para dentro da academia, para dentro da UESB que é uma das principais universidades aqui do interior da Bahia, isso é de muita força. A academia com suas limitações ainda elitista, ainda branca, ainda com pensamentos eurocêntricos, quando a gente traz a cultura quilombola, quando eu trago a cultura de Rio de Contas, eu trago a minha história também eu faço parte dela, eu sou uma mulher preta, neta de lavadeira, sou filha de uma dona de casa. Dentro da cidade rio-contense a minha família foi sempre esmagada pelo preconceito, pelo racismo tudo aquilo que nós que somos pretas e indígenas enfrentamos. Eu tenho me tornado uma pessoa formada em História, estar no mestrado conseguir pesquisar sobre minha própria cidade coisa que muitos não conseguem fazer é uma resposta a esse passado que trago comigo e a esse passado que o próprio quilombo trouxe. Então, a gente exaltar essas histórias trazer as narrativas vivas e colocá-las dentro da academia é dá voz aos povos quilombolas, que é o que a gente precisa para alcançar os diversos lugares. Essa pesquisa é um marco muito forte em minha vida. Até aqui onde eu caminhei, com a idade que tenho, me sinto feliz por ter tido a permissão dos meus ancestrais para isso e me sinto com responsabilidade. A gente vai permanecer e a trazer não só no espaço acadêmico, mas para outros espaços, a história desse lugar onde eu também pertenço, nasci na sede da cidade, mas faço parte da história daquele lugar, me identifico com a cultura do aquilombamento.

Ìrantí – Quanto a sua família, você relatou que não há outros artistas com carreiras profissionais, mas sua avó era uma influenciadora musical. Como essas influências familiares, incluindo o gosto pela música de seu tio e avó, e a poesia de sua irmã, desenvolvida para sua conexão com a música, especialmente o samba? Como sua vivência no Candomblé, sendo do Omi T’Ogun e filha de Oxun, influencia sua relação com manifestações culturais, como o samba de caboclo e o samba de roda? Como você vê essa conexão entre suas raízes culturais, a espiritualidade e a expressão artística, especialmente sendo uma mulher preta nordestina?

Géssica Maria – Na minha família não tem outras pessoas artistas como carreira profissional. Meu tio, minha vó tem um gosto pela música. Minha irmã é poeta. Minha vó sempre foi uma influenciadora musical, ela cantava também. Era lavadeira, ia lavar as roupas na beira da água e cantava, mesmo tendo uma vida muita sofrida, ela conseguiu passar muita leveza para mim, principalmente, através da arte. O samba é uma célula que pulsa de forma diferente dentro de mim. Depois que vim morar em vitória da conquista que me firmei no Candomblé, sou do Omi T’Ogun[2], sou filha de Oxun, somos movidas pela música ancestral. As nossas manifestações religiosas culturais são movidas pelo samba, o samba de caboclo, o samba de roda, eu sou movida por isso não tem como não ser o samba. Sou uma mulher preta nordestina que amo tudo que é da minha cultura, das nossas origens.

Ìrantì – Como você percebe a presença das mulheres pretas no cenário atual do samba em comparação com décadas passadas, especialmente considerando as particularidades da região nordestina, como Vitória da Conquista e Rio de Contas? Pode compartilhar insights sobre a representação e liderança das mulheres sambistas nessas localidades, destacando influências regionais e conexões com questões religiosas? Além disso, em relação a sua trajetória, como mulher preta, sambista e referência em Vitória da Conquista, como você vê o papel das oportunidades, escolhas de caminho e a persistência nos estudos na construção dessa posição? Como a cultura musical e o patrocínio, especialmente após o Estado Novo, impactaram a visibilidade de mulheres pretas no cenário do samba, especialmente em estados fora do eixo Rio de Janeiro-Salvador?

Géssica Maria – Nós tivemos períodos e momentos e cenários históricos que são diferentes dos de hoje, principalmente, aqui da região onde moro, Vitória da conquista. Rio de Contas, posso falar com mais propriedade, esse cenário mais nordestino digamos assim, porque em relação a Salvador, o Rio de Janeiro temos mulheres sambistas que são líderes de sambas de roda, estão no marketing musical. As influencias do samba nessas regiões acabam sendo mais fortes pelo estilo de vida, por muitas vezes, essas mulheres já serem inseridas em ambientes propícios ao samba. A maioria está interligada também a questões religiosas de acordo as peculiaridades de cada lugar, de cada quilombo, de cada Casa de Axé, de cada comunidade. Aqui na região, temos muitas mulheres pretas à frente do samba só que não aparecem, mulheres que são líderes de samba de roda, outros sambas que são mais regionais. É diferente de minha trajetória que hoje eu diria que eu entendo o lugar que ocupo no samba em Vitória da Conquista, acabei me tornando uma referência após esses dez anos, mas porque eu caminhei também por outros caminhos, tive oportunidades, alcancei outros lugares. O fato de não ter desistido dos estudos facilitou outros acessos e os caminhos que escolhi percorrer me ajudou muito. Não acredito ter sido por sorte, mas sim as escolhas de caminho. Muitas vezes as mulheres que não aparecem por conta de dificuldades da vida acabam não entrando na cena cultural de forma serem visibilizadas. Antigamente tínhamos uma cultura musical mais voltada para o empreendimento dentro do samba, após o Estado Novo, o samba recebeu um impulsionamento financeiro, principalmente no Rio de Janeiro. O samba recebeu um patrocínio muito forte para fazer os nomes que foram feitos como o de Elza Soares, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra e de outras mulheres pretas que aparecem nesse cenário. A maioria que se tornaram e se tornam públicas são do Rio de Janeiro, quando a gente vai olhar a configuração de outros estados poucas aparecem. Lia de Itamaracá que recebeu o título de “Patrimônio Vivo de Pernambuco”, em 2005, em resultado de uma política pública voltada para ela e de outras cirandeiras, não é a nossa realidade política da região onde moramos, as mulheres pretas sambistas, artistas existem só precisam de uma política que as visibilizem.

Ìrantì – Como você enfrenta os desafios como mulher preta no cenário artístico, considerando o contexto de racismo e preconceito, tanto internamente quanto externamente? Além disso, como você vê a necessidade de se esforçar mais para superar barreiras e como isso se reflete no desenvolvimento e reconhecimento do seu trabalho? Pode compartilhar experiências sobre a importância de enfrentar esses desafios e como isso moldou sua trajetória no samba e na música em geral?

Géssica Maria – Os principais desafios são os desafios que nós mulheres pretas enfrentamos na vida, como a gente ainda faz parte de um país racista, socialmente criado, pautado no racismo existem algumas batalhas visíveis e invisíveis que precisamos travar conosco mesmo antes de lançarmos voos mais altos. Então primeiro a gente enfrenta o preconceito, os fantasmas desse preconceito, desse racismo dentro de nós. Enfrentar o racismo e o preconceito e o que isso traz para nós, como isso nos destrói, passar por cima disso que é o mais difícil, porque gera insegurança em nosso trabalho, em ter coragem de apresentar uma proposta de trabalho aqui na cidade que ainda é um meio branco, elitista, conservador. Não é fácil cantar um samba que fala de entidades espirituais em determinados lugares, em determinados bairros. É preciso vencer os danos dentro de nós para depois a gente conseguir passar pelos desafios que estão fora de nós. Enfrentar as instituições, enfrentar o machismo, o cenário do samba ainda é um cenário de machismos em todo o Brasil e aqui não é diferente, digo por mim que faço parte de uma banda de samba e que só tem eu de mulher, faço parte de outros projetos em que, infelizmente, só tem eu de mulher inclusive para tocar instrumentos a gente quase não encontra mulheres negras. O cenário artístico não é diferente do cenário social como um todo, existem os padrões artísticos, por isso, que vimos mulheres brancas destacarem mais do que nós nas áreas culturais. É preciso superar esses desafios, dentro de nós, parte de dentro para fora e aí, mercadologicamente, eu diria que há uma exigência maior para nós em tudo, a mulher preta, sempre temos que nos esforçar mais, isso faz com que sejamos fortes, potentes, a gente potencializa nossos talentos, porque, a gente cria uma sede para acessar os lugares que nos foram limitados  e que parecem que não são para nós, mas a gente consegue com muita luta quando a gente consegue vencer dentro o que vem de fora não consegue te afetar… de fazer você desistir de seus sonhos, da sua caminhada, de suas metas, de seus objetivos e de seu trabalho. Tudo é pautado em cima de muito trabalho, sempre trabalhei muito em cima de minhas propostas, projetos musicais. Tive alguns diferencias que possibilitaram ter esse destaque que tenho hoje por cantar samba em suas diversas vertentes: samba reggae, samba de roda, samba carioca, samba baiano; bossa nova, acho que são poucas mulheres, inclusive, que cantam bossa nova para ter um projeto tão particular como esse meu (Bossa Nossa). Então você tem que se identificar e se entender a partir disso, as portas se abrem, sempre vai ter aquelas possibilidades dentro do que você planeja. Necessário ter aquele jogo de cintura em saber o que você está fazendo com segurança, a gente consegue virar a chave daquilo que não seria permitido, aceito. Confesso que ser uma mulher das Águas faz com que seja mais fácil passar por cima das dificuldades, como as Águas.  

Ìrantì – Como você percebe o cenário do samba em Vitória da Conquista ao longo dos últimos dez anos e como contribuiu para abrir espaços, especialmente sendo uma mulher sambista? Podemos falar sobre as limitações do samba na cidade, os desafios enfrentados, e como você enxerga o papel do poder público na promoção e valorização do samba regional?

Géssica Maria – Como mulher, quando olho para trás nesses últimos dez anos, uma mulher que autointitula sambista, apesar de cantar outros gêneros, sou uma sambista, falo isso com muita propriedade para todo mundo, é o ritmo que me especializei, que eu gosto, que eu busco, pesquiso. Eu não posso falar de outros ritmos porque eu não tenho propriedade. Sou uma mulher especialista do samba e que, sempre pesquisou o samba das mulheres pretas, então de fato é minha área. De dez anos para cá, como mulher preta eu conseguir de fato abrir muitos espaços, principalmente no meio masculino. Por ser uma mulher de classe social baixa, sair de minha cidade e passar por várias dificuldades aqui, eu diria que alcancei um lugar. Tinha tudo para dar errado, mas quando eu determino algo em minha vida eu vou com muita coragem, enfrento com coragem. O cenário de Vitória da Conquista para o samba se abriu com muita luta nesses últimos dez anos, mas há alguns equívocos ao que seria samba, as pessoas, às vezes, confundem o samba com pagode, confundem com outras vertentes que estão em ritmo de samba, então ainda falta o entendimento do que é realmente o samba, mas partindo da perspectiva do grupo de samba que faço parte, do que a gente canta, de fato a gente tem aberto e solidificado o samba em Vitória da Conquista através do projeto que traz shows todas as quintas-feiras, se tornou uma tradição, com seis anos de projeto, a gente bate ponto ali no bairro Brasil. Isso é um marco de quando o samba se mostra de forma fixa, não passageira. Conseguimos solidificar o projeto em outro espaço da cidade nesse ano, a cada quinze dias, nos apresentamos com shows de samba. Percebo que outras bandas de samba têm conseguido se mobilizar com mais facilidade aproveitando uma onda que espero que não seja passageira e acredito que não será, porque é um ritmo que é nosso genuíno brasileiro, é algo que pulsa dentro de nós. Acaba que a mentalidade dos empresários de Conquista vai se abrindo para o samba.

O que me entristece é o poder público não incentivar em nenhuma instância o samba regional, não ter projetos voltados para esse gênero que tem crescido de forma tão grandiosa quando a gente pega os editais de cultura aqui em nossa cidade, a gente vai ver que pouquíssimas bandas de samba são contempladas. Muita coisa tem melhorado e do meu lugar posso dizer que abri espaço para o samba enquanto mulher, isso é um marco potente aqui na cidade, ter coragem de sair de minha cidade e vim para cá, adotar um ritmo musical que é muito particular com todas as cargas que o samba enfrenta por ser música de gente preta, enfrentei muitos preconceitos e discriminação, muitas limitações e tentativas de silenciamento, de silenciar o meu canto, principalmente, por ser uma mulher de Candomblé, por mais que eu cante diversos tipos de sambas, quando a gente vai cantar samba de caboclo, de marujo sempre tem aqueles olhares carregados de discriminação e preconceito.

Digo que conseguir passar por cima de todos e todas que não quiseram o meu avanço e das outras que vieram, das que não estão mais aqui, que já estiveram e não conseguiram conquistar outros espaços e as outras que trago dentro de mim, represento uma comunidade de Axé que tem mulheres sambistas maravilhosas, eu trago essa energia, trago o canto e a potência das mulheres de Rio de Contas, não sou uma só, eu carrego minhas ancestrais comigo. Quando tomo posse disso para mim em qualquer espaço que estiver eu vou abrir para mim e para as mulheres que vem junto comigo e as que estão vindo. Hoje temos outras mulheres no cenário do samba: Geórgia que começou um pouco depois de mim, Marlua que é cantora de MPB, forró e atualmente tem se dedicado ao samba, as meninas do terreiro com o Samba de Crioula, as meninas do Bebo de Dola.

Ìrantì – Você transmite a influência da religiosidade afro em seus shows. Como isso vai além de simples inspirações e impacta profundamente sua arte? Pode compartilhar sobre a importância dessa conexão espiritual em sua carreira musical?

Géssica Maria – Trago inspirações da minha religiosidade, sempre faço questão de ressaltar que sou uma mulher de Candomblé, que sou uma mulher iniciada. O meu sucesso e tudo o que conquistei até aqui está pautado na minha ancestralidade religiosa do Candomblé, dentro da cultura afro. É o que me pertence. Está muito além de inspirações como outras pessoas que ficam na superficialidade. É diferente uma pessoa, energeticamente, uma pessoa que é de Candomblé e abrir a boca para cantar um samba de roda de Axé. Trazemos uma energia que é diferente, eu trago a anergia do meu orixá que pulsa em mim. Com certeza essa força que eu conseguir alcançar tem tudo a ver com Oxun em minha vida, tem tudo a ver com as energias que mim acompanham e que me dão força e alicerce para seguir.

Ìrantì – Além disso, como a representatividade das mulheres pretas no samba influencia a percepção do público e a valorização do trabalho artístico? Como você se sente percebida pelo público, especialmente em Vitória da Conquista e Rio de Contas, considerando a representatividade que você oferece para outras mulheres pretas?

Géssica Maria – Dentro do que eu tenho de representatividade de outras mulheres que me seguem e que acabam me tomando como inspiração faz com que eu seja valorizada por outras pessoas, em outros espaços e ambientes. A artista nunca é só, ela é levada por um público que a admira. Eu tenho um público vasto, mas as mulheres pretas se sentem representadas quando me veem ali numa roda de samba que só tem homens. Como já escutei: – Géssica, eu gosto tanto de te vê, você representa. Aquela coisa de saber que é um lugar que nós podemos estar, que todas nós podemos. A representatividade é excepcional para que outras mulheres pretas acreditem, para que possa estar nos lugares e busquem. Foi assim que sentir ao ouvir as mulheres pretas que admiro, ao ouvir as mulheres do samba de roda, que muitas vezes não tem visibilidade, “mas não desisto”, “eu vou conseguir”.  Essa força me encantou, me tocou e vai tocar outras pessoas também. Sinto que sou percebida pelo público conquistense, de Rio de Contas, da região, e até mesmo de outras regiões, por que com as redes sociais muitas pessoas de fora fazem contato, falam que vem para Conquista para meus shows, para ver e sentir a roda de samba, isso me deixa muito… Não consigo nem expressar a alegria de saber da potência que meu canto teve, que minha força de vontade de acreditar em mim teve, das pessoas que acreditaram e que acreditam em mim, me sinto valorizada.    

Ìrantì – Por fim, quais são as novidades que você está preparando para o futuro, considerando seu envolvimento no mestrado e projetos existentes? Pode falar sobre seus planos para desenvolver trabalhos autorais e como espera contribuir para a cena musical nos próximos anos?

Géssica Maria – Por estar no mestrado eu estou sustentando os projetos já existentes. Este ano tive a ousadia de levar para o Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima o “Show Bossa Negra”, um show em conjunto com o “Bossa Nossa”, onde eu interpreto artistas negros da Bossa Nova. Não aquela Bossa Nova de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes, de João Gilberto. Mas a Bossa Negra que nomeia o projeto, de Johnny Alf, Elza Soares, Alaíde Costa, Wilson Simonal, que ficou perdido por muito tempo devido a equívocos, Jorge Bem Jor que começou com a Bossa Nova. Era um momento em que estilo fazia parte da vida dos artistas não tinha como não cantar Bossa Nova entre às décadas de 1950, 1960 e até início da década de 1970. Estes artistas da Bossa Negra abriram outras possibilidades de pensamento crítico em relação ao racismo sempre presente, inclusive, musicalmente, desde sempre. É muita ousadia cantar Bossa Negra dentro do Centro de Cultura com outros artistas que não tinham proximidade com essa vertente, mas que toparam o projeto e, acredito que para os próximos anos, com certeza, com maturidade de dez anos, quero solidificar um trabalho autoral, provavelmente, para o próximo ano, estará aí um EP com sete músicas, como estou nesse ciclo de finalização do mestrado, no próximo estarei com a cabeça fresca para esses projetos que virão. Agora o foco será em algo seja meu, eu sou interprete, tenho algumas músicas autorais, vou desenvolver um trabalho autoral mais sólido.

Nossa opinião:

Ao longo da entrevista, fica evidente a resiliência e a força de Géssica Maria (28), uma mulher preta que desafia os padrões estabelecidos no cenário artístico. Sua trajetória no samba, especialmente em Vitória da Conquista, reflete não apenas o talento musical, mas também a persistência em abrir espaços e enfrentar desafios, tanto de cunho racista quanto de gênero.

A conexão profunda com a religiosidade afro se destaca como uma fonte poderosa de inspiração, indo além de simples influências, moldando a identidade artística de Géssica. A representatividade que ela proporciona para as mulheres negras no samba é evidente, refletindo não apenas em sua própria percepção pelo público, mas também na inspiração que ela se torna para outras mulheres.

A falta de incentivo do poder público ao samba regional é apontada como uma lacuna, contrastando com o crescimento e reconhecimento conquistados pela artista ao longo dos anos. Sua ousadia ao apresentar o projeto Bossa Negra e a perspectiva de desenvolver um trabalho autoral no futuro destacam seu compromisso em expandir fronteiras e consolidar sua contribuição para a música brasileira.Em síntese, a entrevista com Géssica Maria revela uma artista determinada, que não apenas enfrenta os desafios impostos pela sociedade, mas os transforma em oportunidades de crescimento. Sua história é um testemunho da importância da representatividade, da persistência e da conexão espiritual como forças motrizes na construção de uma carreira artística autêntica e impactante.


[1] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

[2] Ilé Alaketu Asé Omi T’Ogun

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Interprograma Memória e Imagem: Senhora Das Plantas – Rosana Paulino

Este interprograma denominado “Memória e Imagem: Senhora das Plantas – Rosana Paulino” foi construído na disciplina “Memória e imagem”, ministrada pelo professor Dr. Rogério Luiz Silva de Oliveira, do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, em parceria com alunos do curso de Cinema.

Neste contexto, produzimos, a partir das discussões teóricas a respeito dessa mesma temática, contextualizado com os objetos de pesquisas em desenvolvimento pelo/as discentes (mestrado e doutorado) do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Nesta perspectiva, construímos o interpograma a respeito da ancestralidade feminina focalizado numa discussão que traz interpretações a partir da experiência de uma pesquisa etnográfica em curso, que trilha caminhos no âmbito da ancestralidade negro-africana, retratando o saber ancestral feminino e seus mecanismos rituais. Em vista disso, a pesquisa supracitada coloca em análise a ancestralidade enquanto categoria analítica da memória que se desdobra na discussão de um saber fazer feminino, de uma construção epistemológica ancestral feminina.

Desenvolvemos uma discussão sobre a memória através das imagens produzidas pela artista visual Rosana Paulino, compreendendo que essas imagens geradas tem funções no processo contínuo em produzir, lembrar e manter a memória de uma visão de mundo de um tempo pretérito que perpassa pelos traumas do tráfico de pessoas do continente africano ao Brasil, escravização e enfrentamento a uma sociedade colonial, racista e patriarcal. Assim, as gravuras da artista retratam expressões de identidades evidenciadas de uma memória viva e presente continuamente, rotineiramente revivida através de gestos, rituais, mitos, condutas.

De acordo Ana Paula Ribeiro[1] há um movimento de privilégio de reflexões e narrativas a respeito das memórias e diásporas negras através das imagens com uma materialidade que aproxima imagens e memórias. Com isso, tem-se a abertura de um caminho a uma memória reconstituída, ressignificada que traz os sentidos de identidades.

Para tanto, a discussão parte das relações estabelecidas entre memória e imagem desses objetos/gravuras selecionadas, bem como, de como as pessoas os elegem para a construção de memórias de um feminino que é substantivamente construído historicamente, de forma, articulado e envolvido em significados distintos pelos grupos sociais ao longo da história e assim, concepções diversas são produzidas, sentidas, interpretadas. Numa construção dinâmica entre flutuações e revezes dentro de um contexto sociocultural e político como explica Sueli Carneiro[2].

Selecionamos as gravuras da artista visual Rosana Paulino, que compõem o trabalho artístico da artista visual brasileira, que também se dedica a diferentes mídias como desenho, escultura e vídeo, como pode ser vista no interprograma, para tecer interpretações a respeito desse feminino emanado de memória e ancestralidade fonte epistemológica de construção e interpretação de mundos, signos, símbolos apresentados em mitos narrados pelas mais velhas e mais velhos, sabedoria da tradição oral e mítica, retratados pelas gravuras que trazem uma relação direta do corpo feminino com as plantas e árvores, tendo em vista, um movimento para eternizar memórias das mulheres negras.

A Tela 01 selecionada para este trabalho, faz parte da série Jatobá, lançada no ano de 2019 e que compõe o livro “Búfala e Senhora das plantas”. Faz parte da série de desenhos em aquarela, momento em que a artista propõe uma descolonização imagética, evidenciando a memória das mulheres negras no Brasil como fonte de uma tradição ancestral que unifica a mulher, a natureza, a cultura e seu poder de ressignificação, construção, produtividade e fertilidade.

Nesta tela tem-se a imagem da mulher associada à árvore. A mulher é ao mesmo tempo corpo e árvore, estabelecendo uma relação com os ancestrais e a força que após ser restituída se expande e garante a continuidade, retratada por Paulino, através da árvore Jatobá, que toma forma feminina trazendo referências a este sagrado que é o princípio e a força do feminino, fonte das mulheres para enfrentamento de todas as adversidades provocadas por uma sociedade estruturada no racismo e sexismo.

Tal qual faz também na série “Senhora das plantas”, lançada em 2015, conforme pode ser observada na Tela 02. Nota-se que Paulino, nesta série, retrata a relação da mulher com a terra, à cura, ao alimento, às raízes, à mãe que nutre e cura. Nesse sentido, a planta associada a mulher em um complexo imagético interpretado segundo as construções sociais de uma episteme ancestral africana e afro-brasileira.

Tela 01 – Série Jatobá, 2019.                                       

Fonte: https://rosanapaulino.com.br/, 2022.     

 

Tela 02 – Série Senhora das plantas, 2015.

Fonte: https://rosanapaulino.com.br/, 2022.

 

 

Através do trabalho de Rosana Paulino percebe-se como a memória foi imprescindível às populações negras considerando o novo contexto diaspórico imposto por possibilitar ressignificar e reconstruir elementos civilizatórios de legado africano. O princípio ancestral da coletividade presente nas sociedades africanas foi acionado quando da necessidade de memorizar em conjunto, em coletivo.

Por fim, ao analisar as imagens percebemos a memória coletiva do feminino retratada, considerando que a concepção de feminino acontece de forma relacional partindo sempre de um contexto sociocultural. Desta forma, o texto alcançou a produção de uma memória coletiva do feminino construída a partir de ressignificações ancestrais mitológicas. A história vivida pelos povos negros onde se apoia suas memórias, possibilitou as narrativas de uma consciência histórica do feminino com problematizações envolvendo, entre outros fatores: a diversidade da experiência feminina nas diferentes sociedades vivenciadas e a compreensão da subjetividade da memória envolvida em uma complexidade histórica capaz de revelar uma riqueza cultural ancestral e uma diversidade epistemológica de sentidos e significados.

 


[1] RIBEIRO, Ana Paula Alves. Atravessamentos pós-coloniais, imagens e memórias: sobre os Filmes negros, de Mônica Simões, e Travessia, de Safira Moreira. p. 75-98. In. FARIAS, Edson et al. Memória e imagens: entre filmes, séries, fotografias e significações. 1. ed. Jundiaí-SP: Paço, 2020.

[2] CARNEIRO, Sueli. A força das mães negras. Le monde Diplomatique Brasil. Ed. 4. Brasil, 2007. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-forca-das-maes-negras/. Acesso em: 13 de novembro de 2023.

 

Viviane Sales Oliveira

Doutoranda em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS), pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; bolsista pela CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 2022-2027. Mestra em Relações Étnicas e Contemporaneidade, pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPGREC-ODEERE-UESB); bolsista pela CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 2018-2020. Especialista em Antropologia com ênfase em Culturas Afro-Brasileiras, pelo Órgão de Educação e Relações Étnicas-ODEERE, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB. Bacharela em Administração, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; Atuou na formação de gestores sociais e desenvolvimento de ações formativas e educativas para gestores sociais. Atuou como professora de Associativismo e Cooperativismo e disciplinas de cursos de extensão universitária. Atualmente integrante do corpo docente do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Etnicidade, Educação e (De) Colonialidades, promovido pelo Órgão de Educação e Relações Étnicas (ODEERE) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB, campus Jequié-Ba.

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Fios de resistência

Preciso enviar um recado para o passado. O destinatário é um “barbeiro” que recebia as crianças em suas cadeiras para mais uma sessão de tortura. Bastava meu cabelo crescer meio centímetro e ali eu estava fugindo da repressão de uma sociedade que temia ser identificada como “Jackson Five”. Não compreendia bem sobre quem estavam se referindo, mas sabia que eram tão temidos quanto a sensação de ser violentado quando uma espécie de garfo cortante perpetrava pela superfície capilar do meu crânio.

A ferramenta cortante traumatizou outras muitas crianças da época. Para além de tentar suportar a sensação de estarem retirando fio por fio, a apresentação do “novo visual” era tão perceptiva entre os que conviviam comigo na escola e fora dela, que logo corriam para tapear minha cabeça com a justificativa de “cortou o cabelo e não me avisou!” Avisou o que e a quem? Era a pergunta que eu sempre tinha quando o tal barbeiro, todo orgulhoso por ter “derrubado a mata”, finalizava seu ato violento, queria dizer, seu trabalho.

Entretanto, ainda tinha outro dispositivo de poder operante naquela sociedade que me coloco no presente como remetente deste bilhete: o fato de aparecer com a cabeça raspada e de não ter sido mais uma vítima de um agente da segurança pública, cujo nome remete a sonoridade de “ABSOLUto”. O famoso “dotô delegado” que aterrorizava a periferia de Vitória da Conquista, hegemonicamente preta! Um dia desses, cheguei a encontrar o dito cujo apreciando uma roda de capoeira em que eu estava jogando. Não minto que fui reacionário e cobrei o dever de memória sobre os corpos desaparecidos naquele período, principalmente quando tive a oportunidade de conversar com o mesmo durante 2 minutos!

Enfim, hoje percebo que cada fio que emaranha o formato Power que enquadra o formato do meu rosto, conecta com cada fio derrubado violentamente pelo meu destinatário. E mais resistentes cresceram outros novos, tornando-se velhos companheiros, estabelecendo este novo vínculo identitário e pronto para enraizar e ressurgir, agora, em tantas outras camadas capilares emergentes e insurgentes.

Atenciosamente Prof. Dr. Jonatan dos Santos Silva

Prof. Dr. Jonatan dos Santos Silva

Possui Licenciatura Plena em Educação Física na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB (2008). Doutor (2023) e Mestre (2018) pelo Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB, do Projeto de pesquisa: Memória Cultura e Educação e da Linha de pesquisa: Memória, Cultura e Cidade. Estudante do curso de especialização em Etnicidades, Educação e (De) Colonialidades, na UESB (2022). Atualmente é Professor Assistente junto ao Departamento de Saúde I, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB – Jequié), atuando como docente no curso de licenciatura em Educação Física. Contramestre de capoeira do Movimento Cultural Consciência Negra. É Professor regente na Rede Estadual de ensino público da Bahia, em Vitória da Conquista. Vencedor do concurso nacional de monografias sobre a cultura afro-brasileira realizado pelo ministério da cultura em 2010. Tem experiência em Educação Física, com ênfase nos conhecimentos da Cultura corporal: Dança, Lutas, Jogos, Esporte e Capoeira, investigando principalmente os seguintes temas: Capoeira, Cidade, Comunidades Tradicionais, História e Memória; Lazer; Corpo e Oralidade. É vice líder do grupo de pesquisa “CORPORHIS: Corpo, história e cultura”, CNPQ.

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Do Campo à Corte: A Jornada do Jovem que Conquistou a Justiça da Bahia

Em 1936, na pacata cidade do Conde, a 179 Km da capital Salvador, nas entranhas da Bahia, nascia José Bispo Santana, homem negro que no futuro percorreria os caminhos da Justiça baiana. Um jovem, filho de um humilde lavrador, o sr. José Bispo dos Santos e de uma incansável lavadeira a senhora Maria Faustina de Jesus, José Bispo — como ficou conhecido — teceu sua própria trajetória de superação e dedicação aos estudos que culminou em um feito extraordinário: tornar-se desembargador no estado da Bahia.

A jornada desse filho da região da Costa dos Coqueiros na Bahia começou em uma casa simples, onde o calor do fogão a lenha era o ponto de encontro das aspirações e dos sonhos. Aos finais de semana, a mãe dedicada também se transformava em uma habilidosa quituteira, levando seus manjares à feira da cidade, não apenas para garantir o sustento, mas também para fomentar os anseios de uma qualidade de vida melhor.

O jovem, desde cedo, nutria um sonho grandioso: tornar-se juiz. Era comum enquanto sua mãe preparava as refeições ao pé do fogão a lenha, José Bispo pegar um ou dois pedaços de carvões e escrever nas paredes de casa a frase “José Bispo Juiz de Direito”. Não acreditando na possibilidade devido às circunstâncias sociais e condições financeiras, sua mãe sempre o repreendia. Pois, assim como a maioria dos moradores da cidade, achavam tudo aquilo uma grande utopia. Afinal, quem em sã consciência acreditaria que aquele menino pudesse se estudar na Capital do estado e até se tornar Juiz de Direito e chegar ao cargo de Desembargador?

Consciente de que o caminho seria árduo, ele não hesitou em buscar oportunidades de estudo. Vez que, para o seu nível social e para a época, seu acesso à educação alcançaria apenas a oitava série. Foi então que, com uma determinação própria, decidiu escrever uma carta a próprio punho destinada ao então presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954). Naquela carta, o futuro juiz e desembargador, mesmo diante da sua pouca idade, conseguiu expressar sua história de lutas, desvelando os obstáculos que a sua realidade lhe impunha.

Atravessando os sofrimentos das estradas de chão e o labor de diversas realidades da época, a carta chegou aos corredores do poder do Palácio do Catete no estado do Rio de Janeiro, bem como às mãos do presidente do Brasil, que ao ler aquelas palavras carregadas de esperança e determinação, decidiu estender a mão ao jovem promissor. Foi assim que aquele jovem conseguiu uma bolsa de estudos, e esta lhe dava acesso a um internato na cidade de Salvador-Ba, abrindo as portas para um futuro repleto de possibilidades.

Daí por diante, a vida daquele jovem ganhou novas cores e perspectivas. Sob o teto da academia, ele mergulhou de cabeça nos estudos, demonstrando uma aptidão brilhante para o conhecimento jurídico. Em 1964, orgulhosamente, ele se formou em Direito pela Universidade Federal da Bahia, marcando o início de uma jornada que culminaria em feitos notáveis.

Contudo, a caminhada rumo à magistratura ainda estava em seu início. O jovem bacharel não mediu esforços para galgar degrau por degrau. Em 1966, aprovou-se em um concorrido concurso para juiz de direito, dando início a uma carreira que se destacaria pela ética, humanidade e dedicação ao jurisdicionado. Seus passos o levaram às mais diversas comarcas do estado da Bahia, com passagem em cidades como Itambé e Vitória da Conquista, no sudoeste do estado. Ele deixava sua marca de justiça e empatia. Era um magistrado que não se restringia apenas aos rigores da Lei, mas que também compreendia as nuances e desafios enfrentados por aqueles que buscavam resolução na Justiça.

Sua trajetória não foi isenta de obstáculos e desafios, mas cada adversidade era encarada como uma oportunidade de crescimento. A humildade e a dedicação que o acompanharam desde os dias de São Francisco do Conde eram pilares inabaláveis em sua jornada.

Em 2002, após 36 anos de ter sido aprovado como Juiz de Direito, e após uma carreira repleta de méritos e dedicação, o Dr. José Bispo, que outrora sonhara em se tornar juiz, viu seu esforço e talento serem reconhecidos. E aquela alma ainda jovem é convocada a tomar posse como Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia. Assim, aquele senhor, que enquanto garoto materializou nas paredes de casa o sonho de escrever uma carta ao então presidente Getúlio Vargas pedindo apoio para dar continuidade aos seus estudos, agora ocupava uma posição de destaque na magistratura baiana. Porém, a sua escolha foi se tornar desembargador por antiguidade. E assim, aconteceu.

Seu legado vai além das salas de audiência e dos corredores do tribunal. José Pinto foi um exemplo vivo de que a determinação, aliada ao acesso à educação, pode transformar vidas e superar as barreiras impostas pelo meio. Sua história é um exemplo para as pessoas que ousam sonhar alto, mesmo diante das adversidades.

Hoje, se estivesse vivo, e se pudesse olhar para trás e contemplar toda a jornada percorrida, com certeza ele reafirmaria a sua gratidão às raízes que o moldaram, à família que o apoiou e aos mentores que o guiaram. Cada desafio enfrentado e cada vitória conquistada foram tijolos que construíram o caminho que o levou da simplicidade do campo à grandiosidade da corte. Aquele Desembargador, com sabedoria e experiência, continua a inspirar não apenas aqueles que têm o privilégio de trabalhar ao seu lado, mas também uma nova geração de estudantes e profissionais do direito. Sua jornada é uma prova irrefutável de que, com esforço e dedicação, é possível romper fronteiras e alcançar as estrelas.

Para finalizarmos essa narrativa de vida e conquistas, podemos considerar que o exemplo de José Bispo Santana ressoa não apenas no âmbito da justiça, mas em todas as esferas da sociedade, lembrando a todos que os limites são apenas fronteiras a serem desafiadas. Que sua jornada inspire não apenas os jovens que aspiram à advocacia, mas a todos que buscam transcender as circunstâncias e alcançar o extraordinário.

O jovem que um dia sonhou em ser juiz se tornou um farol de esperança e possibilidade. Sua história é um lembrete de que, independentemente de onde uma jornada ou um sonho comece, com determinação e paixão pelo conhecimento, é possível alcançar e tornar nossos objetivos de maneira inimaginável, e que apenas o céu pode ser o limite.

E assim, foi a trajetória do jovem que saiu do campo para conquistar a corte, permanecendo como um testemunho de que os sonhos mais audaciosos podem se tornar realidade quando regados pela persistência, resiliência e, acima de tudo, pelo amor à Justiça. Que sua história inspire gerações presentes e futuras a trilharem seus próprios caminhos rumo a um futuro de possibilidades sem limites.

A reflexão sobre a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro é essencial para compreendermos as complexidades e desafios que permeiam nossa sociedade. O diagnóstico apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça evidencia uma realidade alarmante: apenas 1,7% dos juízes e juízas se identificam como pretos, enquanto a grande maioria, 83,8%, é branca.

Essa disparidade reflete não apenas uma questão de representatividade, mas também de acesso igualitário às oportunidades no campo da justiça. É crucial questionarmos por que a diversidade racial ainda é tão sub-representada em um setor tão fundamental para a garantia dos direitos e a promoção da justiça social.

A ausência de equidade racial no judiciário brasileiro representa uma lacuna na efetivação dos princípios democráticos e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A diversidade de perspectivas, experiências e vivências é fundamental para uma atuação judiciária mais sensível às diferentes realidades e para a construção de decisões mais equitativas.

Diante desse quadro, torna-se evidente a urgência de implementar medidas mais eficazes para promover a equidade e a representatividade racial no sistema judiciário. A política de cotas, por exemplo, é um passo importante, mas como apontado no texto, ainda não está cumprindo seu papel de forma plena.

Além disso, é fundamental investir em programas de ação afirmativa que vão além das cotas, proporcionando condições igualitárias de concorrência e acesso à educação e formação para candidatos negros. Isso implica em um esforço conjunto da sociedade, das instituições de ensino e do próprio sistema judiciário.

A falta de diversidade no judiciário não é apenas uma questão estatística, mas tem impactos profundos na forma como a justiça é administrada e percebida pela população. A representatividade é um componente essencial para a construção de uma instituição mais acessível, confiável e legitimada.

Portanto, ao refletirmos sobre esse diagnóstico, somos desafiados a repensar e reforçar nossos compromissos com a promoção da diversidade e inclusão no campo da justiça. Somente por meio de ações concretas e comprometidas poderemos transformar essa realidade e garantir que a justiça seja, de fato, para todos.

Uma pontuação:

Sim, podemos afirmar que esse personagem protagonizou um verdadeiro êxodo rural em sua trajetória. Originário da cidade do Conde, uma cidade de perfil majoritariamente rural, ele almejava algo mais. Seu desejo de ascender na vida por meio do estudo e da educação o levou a dar o passo crucial de deixar o ambiente rural para buscar oportunidades nas áreas urbanas.

Essa mudança não foi apenas geográfica, mas simbólica. Ao abandonar o campo, ele abandonava também as limitações impostas pelo ambiente rural, abrindo-se para um mundo de possibilidades e crescimento pessoal. Essa transição simboliza não apenas uma mudança de localização, mas uma mudança de perspectiva e mentalidade.

Ao perseguir seus sonhos na cidade, ele demonstrou que o êxodo rural pode ser o ponto de partida para uma jornada de realização pessoal e profissional. Sua história serve como um poderoso exemplo de como a determinação e o acesso à educação podem transformar vidas e abrir portas para um futuro mais promissor.

Um dado importante:

Em matéria publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro deste ano de 2023, o Brasil destaca a preocupante falta de equidade racial no sistema judiciário brasileiro, com apenas 1,7% dos juízes e juízas sendo pretos. Isso contrasta significativamente com a maioria branca, que representa 83,8% dos magistrados. Além disso, 12,8% dos juízes se identificam como pardos.

A análise também revela que a política de cotas, que inicialmente previa 20% de magistrados negros ingressando na magistratura brasileira, não está sendo cumprida efetivamente, com apenas 3,5% dos ingressantes beneficiando-se desse sistema. A representatividade é um pouco maior entre os magistrados que se autodeclaram pretos, com 12,4% de aprovação pelo regime afirmativo.

O texto destaca a lentidão no progresso em direção à equidade racial e aponta para a necessidade de um acompanhamento contínuo das questões étnico-raciais no Poder Judiciário para obter análises mais precisas sobre o avanço nessa área. No que diz respeito aos cargos de chefia, as servidoras brancas têm uma representação mais significativa (74,5%) em comparação com as mulheres negras (21,9%), indicando uma disparidade na oportunidade de alcançar cargos de liderança.

A pesquisa também aponta que uma parcela muito pequena dos magistrados ativos foi aprovada por meio das cotas étnicas-raciais, o que indica uma sub-representação das populações negras e pardas no sistema judicial. A juíza Karen Luise de Souza destaca a necessidade de medidas mais abrangentes do que simplesmente cotas para promover a diversidade na magistratura, enfatizando a importância de oferecer condições de concorrência e de estudo para candidatos negros.

A matéria conclui destacando que é crucial considerar também o contexto racial dos estados para uma análise comparativa mais precisa sobre o nível de inclusão alcançado em cada corte.

O Conselho Nacional de Justiça ressalta a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro e a necessidade urgente de medidas mais eficazes para promover a equidade e representatividade racial no campo da justiça.

Para refletir sobre o por que

A reflexão sobre a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro é essencial para compreendermos as complexidades e desafios que permeiam nossa sociedade. O diagnóstico apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça evidencia uma realidade alarmante: apenas 1,7% dos juízes e juízas se identificam como pretos, enquanto a grande maioria, 83,8%, é branca.

Essa disparidade reflete não apenas uma questão de representatividade, mas também de acesso igualitário às oportunidades no campo da justiça. É crucial questionarmos por que a diversidade racial ainda é tão sub-representada em um setor tão fundamental para a garantia dos direitos e a promoção da justiça social.

A ausência de equidade racial no judiciário brasileiro representa uma lacuna na efetivação dos princípios democráticos e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A diversidade de perspectivas, experiências e vivências é fundamental para uma atuação judiciária mais sensível às diferentes realidades e para a construção de decisões mais equitativas.

Diante desse quadro, torna-se evidente a urgência de implementar medidas mais eficazes para promover a equidade e a representatividade racial no sistema judiciário. A política de cotas, por exemplo, é um passo importante, mas como apontado no texto, ainda não está cumprindo seu papel de forma plena.

Além disso, é fundamental investir em programas de ação afirmativa que vão além das cotas, proporcionando condições igualitárias de concorrência e acesso à educação e formação para candidatos negros. Isso implica em um esforço conjunto da sociedade, das instituições de ensino e do próprio sistema judiciário.

A falta de diversidade no judiciário não é apenas uma questão estatística, mas tem impactos profundos na forma como a justiça é administrada e percebida pela população. A representatividade é um componente essencial para a construção de uma instituição mais acessível, confiável e legitimada. Portanto, ao refletirmos sobre esse diagnóstico, somos desafiados a repensar e reforçar nossos compromissos com a promoção da diversidade e inclusão no campo da justiça. Somente por meio de ações concretas e comprometidas poderemos transformar essa realidade e garantir que a justiça seja, de fato, para todos.